Gabriel Demasi

O vento

Com os olhos fechados, por dentro das pálpebras, vejo uma luz clara, feixes instáveis, vou embarcando, vou me perdendo. Sinto algo semelhante a uma tontura e me vou. É gostoso. É uma das sensações que gosto de perceber no corpo.

Nesse estado tenho as mais loucas ideias. Não que sejam tão loucas assim. Na verdade acho que essa tontura entre sonho e realidade, entre estar acordado e dormindo, é quando se amarram os desejos, quando a história se fecha, as cenas se compõem.

Falo por dentro o que não tenho coragem, o que não tenho com quem dividir, nem comigo mesmo acordado. O que dorme e sonha fala sozinho. Acordado, os desejos não cabem.

Nesses segundos me conecto comigo, com minha fantasia, e de certa forma isso me parece ser algum tipo de fé. De ritual. Como se rezasse. Evoco algo em mim. E sinto aquela chamazinha lá longe, aquela crença lá no fundo. “Vai que se eu pedir bem forte acontece”. Não peço a Deus. Acho que ne acredito em Deus. Nessa hora peço a mim mesmo. Os dois que existem em mim conversam. Aliás, são muitos mais que dois. São, em primeiro lugar, na camada mais perto do acordado, o sensato e o sonhador, e lá longe, perto do alto de onde irradiam os feixes claros, todos os eus que já fui e os que sonho ser. É uma grande reunião. É isso a religião. Reunir, religar. Logo, posso dizer que para mim há algo de religioso em sonhar.

Hoje sonhei – quando digo que sonho, me refiro a essa iluminação – com tantos sentimentos misturados. Percebo que acesso essas camadas quanto mais vazio e perdido me sinto.

Me lembro da viagem a Córdoba e num looping alucinado vou de pessoa em pessoa, de lembrança em lembrança. Cheguei a Córdoba e senti o estranhamento daqueles dias. Uma relação no ar, repentina e voadora, que estava com os dias contados e eu não sabia como me situar. E voltei para casa e estava tudo arrumado. Já não tenho certeza. Mas lembro de um grande desencontro e do Tintin tentando me agradar com uma tristeza nos olhos, isso vai acabar, gordo, talvez tenha me dito.

E de repente sinto o cheiro da fronha limpa, perfumada, lembro das noites em que dormi com o Tártaro, voador como o Tintin, um bom coração e um imenso fogo no rabo, e imagino um grande trio. Todos transando. Ele, o Tintin, e, por que não, todos aqueles com quem transei ultimamente, numa grande orgia em que meu próprio corpo não tem muito sentido nem presença, me sinto num grande vendaval, uma ventania em mim, não dá tempo de entender nada. Como no ônibus, indo para o aeroporto, não tenho tempo de entender.

Todas as vezes em que quis rever o Rafael e voltar, tentando aterrissar, aterrar, agarrar, era como uma pilha de jornais se abrindo com o vento batendo e eu tentando pôr uma pedra em cima. Um peso. Não acho que fosse para eternizar, porque no fundo não tem muito a ver comigo a eternidade, mas sim um imenso ímpeto de entender. Para dar tempo. Para parar um pouco a ventania. Para não ficar para sempre com o olhar no ar como última lembrança. Por isso voltei tantas vezes acordado e minha mente ainda volta em sonho.

Nesse ponto me imagino com o Rafael diante de um espelho hipotético. Os dois parados, de pé. Chego por trás dele e dou um beijo no pescoço. E aperto. E ali ficamos, parados, vendo aquilo. Sem nada de traição ou luxúria. Como um experimento de intimidade, um estimulador de emoções, um teste do coração.

– Posso tirar uma foto?

Ele ri seu riso sapeca, meio sem jeito tentando disfarçar a sem-gracisse, meio debochado como se dissesse “você é engraçado” como tantas vezes disse, meio desconcertado, rindo para não entregar que minha graça o desconcerta e que se surpreende por ainda gostar disso.

– Uai, gab. Pode, claro.

Pode. Lógico que pode. Pode tudo. Temos licença eterna para tudo para sempre.

– Quero olhar depois e ver como ficamos, o que vejo, o que sinto. O que tem na imagem.

O desconcertei. Não fui romântico. Estou testando.

Imagino esse espelho, um abraço, esse teste dos toques. Será que esse lugar que um tem no outro é gostoso para sempre? Será que tem algum código secreto que os nossos corpos falam? Será que sempre que ficam lado a lado começam a conversar? Se entendem além de nós? É compreensão das moléculas? Conversa atômica? Carinho cardíaco?

E venta dentro de mim. O vento me leva. O vidro da Kombi está aberto. Entra vento pela janela. Estou parado com o pisca-alerta ligado em frente à farmácia, praticamente dentro de uma enorme monstera, no canteiro da esquina.

Aquela espera dura horas, incontáveis ventos. Não quero estar ali. Me sinto completamente desconectado. Sem sinal, de tanto vento. Me chama outro lugar, mas não tenho recursos, nem ânimo, nem a menor condição de enxergar qualquer saída. Só o vento dentro de mim. E eu. Sem entender nada.

Por que não para nunca de ventar?

Então sinto o cheiro da fronha, de roupa de cama nova, e me lembro de todas as vezes em que estive ali com a cara na monstera. E percebo que agora estou com a cara na fronha, num quarto novo, num lugar em que construí coisas e ao qual atribuí sentidos, do qual tenho novas memórias. Me angustia não saber por mais quanto tempo vou poder estar aqui. Me dá medo que o vento me leve de novo. E que tudo seja jogado no ar e eu não consiga pegar nada. Não quero de novo entender só depois.

Penso que igual ao dia da monstera, em que o sinal abria e eu não sabia como arrancar, agora sei que estou outra vez diante do nada, mas que em pouco tempo lembrarei dessa noite de insônia angustiada – da carência de sentido e perspectiva – e o cheiro da fronha limpinha será a nova monstera.

Sei disso.

Custa apaziguar as correntes de ar. Aprendi que sei viver. Me viro. Me vivo. Tudo bem.

Mas queria muito que todos esses ventos se encontrassem e voassem juntos para o mesmo lugar. Para dentro de mim. Dentro da minha imensidão. E que eu mesmo me agarrasse. Sem precisar de espelho. E que assim a vida fosse uma só, na madrugada e durante a tarde, sonhando e acordado.

Residência artística. Ou assentamento. Ou raiva

A quarentena pode muito bem ser uma residência artística. Uma casa é uma residência e se há nela alguma arte, ela passa automaticamente a ser uma residência artística.

Tomo sol deitado na varanda do apto artístico. Acho legal a sigla ser apto. É bem o que é mesmo, ou o que acharam que era, um espaço apto.

A avenca está voltando. Ela gostou do novo lugar. Não fui eu que pus ela aqui. Eu era a pessoa mais indicada pra isso mas não quis mexer com elas. Como consequência, a babosa que eu gostava de ver deitado na cama olhando pra fora foi deslocada, a avenca semi-aparece e na reta da cama ficou um vaso de zinco em forma de trapézio. Vazio. Vaso podia ser com z. O z é uma letra subutilizada.

Arrumei uma terapeuta japonesa. Fui no consultório duas vezes antes da quarentena, depois fiquei na moita e depois decidi tentar à distância. Sento na cama e ela chama com vídeo. Eu gostei, no fim das contas.

Ela diz “quando você vai respirar?”. Penso em responder que não respiro mesmo, fumo, que é respirar pra dentro, mas tenho vergonha e não digo. Tenho vergonha. Fumo sem parar. Fumo o dia inteiro. Estou completamente escravo, não consigo controlar a vontade ininterrupta. Aqui interrompo para buscar o tabaco na sala. Estou na varanda.

Mas não quero falar de novo – una y otra vez, aprendi nas preparações e fingi que sabia, eu finjo (não gosto do j) com frequência que sei as coisas, no fundo e não é que sei mesmo? porque ouço e já entendo – de mim e de mim. Nas residências artísticas todo mundo também só fala de si. Todo mundo só sabe falar de si, bruto ou com alegorias. Quando o mundo fala do mundo é alguém falando de si também.

Não variamos muito. Na verdade é tudo a mesma coisa, sempre, ciclos espalhados em espaços de tempo mas tudo é igual.

Tá, mas o que posso fazer com isso? A terapeuta diz que não é pra fazer algo com algo sempre. Eu respondo que é porque a dúvida me deixa aflito, e aflição é um problema, e quero resolver o problema.

É isso. Porque vivo tentando resolver um problema que nem sei o que é. Porque sou aflito. Vivo aflito. Acordo aflito porque tenho que acordar, durmo aflito porque tenho que dormir, meto aflito porque tenho que meter – acrescento depois: eu não sei brincar –, enquanto isso fumo e fico aflito porque preciso fumar mais.

Penso, penso, penso, mas nada se assenta. É claro, como que algum pensamento vai achar um lugar ok pra se assentar se eu não paro? Ia dizer turbilhão mas essa palavra me irrita, acho que dá ainda mais aflição.

As palavras me irritam e pensando bem não são as palavras. São as pessoas. Não contra elas, mas porque se elas falam algo repetidamente e sem se afetar com isso é porque o sentido do que elas querem dizer se assentou. E tenho raiva, raiva!!! Raiva das palavras, das pessoas, de mim mesmo porque nenhuma palavrinha se assenta em mim o suficiente para apenas ser sem mais. Porque o que penso, sinto e falo não cabe nem para em mim, é tipo uma revoada alucinada há infinitos anos sem decidir onde pousar porque nem sabe que está voando.

E isso me deixa profundamente irritado.

Vivo tentando consertar e pousar só um pouquinho.

É porque me sinto desprotegido.

E tenho raiva! Raiva! Na verdade só to pedindo socorro.

Mas isso, agora, escrevi com prazer.

“A longa viagem noite adentro”, Pedro Almodóvar

Antonio Banderas e Julieta Serrano passeiam pelo corredor da casa de Pedro Almodóvar em seu útlimo filme, "Dor e glória"(2019).

Antonio Banderas e Julieta Serrano passeiam pelo corredor da casa de Pedro Almodóvar em seu útlimo filme, “Dor e glória”(2019).

Até agora tinha me negado a escrever. Não queria deixar registro escrito das sensações que os primeiros dias de isolamento estão me provocando. Talvez porque o que descobri primeiro foi que a situação para mim não é tão diferente da habitual, eu que sou acostumado a viver sozinho e quase em estado de alerta, o que não é uma descoberta alegre. Nos nove primeiros dias me neguei a escrever qualquer coisa. Mas essa manhã li uma notícia que parecia capa de uma revista de humor negro: “O palácio de gelo se transforma em necrotério improvisado”. Parece giallo italiano, mas está acontecendo em Madri, é uma das “notícias sinistras do dia”.

Hoje completo 11 dias de confinamento. Me isolei na sexta-feira, 13 de março; desde então me organizo para enfrentar a noite, o escuro, porque vivo como um selvagem, no ritmo ditado pela luz das janelas e a varanda. Estamos na primavera e os dias têm sido verdadeiramente primaveris! É uma das sensações maravilhosas de cada dia, algo que tinha esquecido completamente. A luz do dia e seu variado périplo até cair a noite. A longa viagem noite adentro, mas não como algo ruim, e sim prazeroso. (Ou estou empenhado nisso, dando as costas para a agonia dos dados).

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O que fazer com Silvia Belli?

Como explicar a Silvia Belli toda a conexão e familiaridade que eu sentia por ela? Tudo o que ela carregava sem saber. Tudo o que eu via, eu também sem entender. Eu, um jovem brasileiro, de 16 anos. Ela, uma mulher de uns 45 anos, italiana, na França. Todos os símbolos e signos, todos os sentidos que encarnamos, toda a cultura, toda a linguagem. Toda a fantasia também. E como contar a ela? Como fazer com que Silvia Belli sentisse o que eu sentia? Como traduzir?

Ou então isso será uma daquelas coisas que é melhor nunca dizer, nunca contar? O que faço, Silvia Belli, com o que sinto por você?

Dez anos depois.

Toda as camadas da História pulsam em mim e preciso te contar o que vejo em você e o que você me faz relembrar.

Você também, de certa forma deslocada ali. Tão familiar. Você para mim era toda a história da colonização do Brasil, do estado de São Paulo, das cidades do interior. Você ali, branca e rechonchuda, as bochechas vermelhas, meio sem jeito. Eu, perdido e meio fascinado com tudo aquilo.

Será que você lembra de mim ou só lembra como um aluno atento, um aluno interessado? Será que você, de alguma forma, entendeu tudo o que você representava para mim?

O corpo encarna a cultura. Era isso o que eu via sem saber.

É como ver Yamandú Costa. O corpo, a postura, todos os gestos carregam uma identidade, que fala por si. Quando um brasileiro vê Yamandu Costa tocando, seja onde for, o jeito como ele entra no palco, como ele senta para tocar violão, a sandália que usa, um gesto, um olhar. O povo tem a cara do povo.

E Silvia Belli para mim tinha a cara de Campinas. Minhas tias-avós, todas meio gordinhas, um cabelo característico, um cheiro de talco e perfume, uma cara de saúde, ao mesmo tempo de uma elite meio nojenta, meio divertida e extravagante, rindo algo, falando besteira, com uma fala só delas.

Silvia Belli ali na França, num contexto tão hostil e asséptico, quase, de tanta distância… Silvia Belli me deixava tão perto de tudo que era meu. Mas isso nem me pertence nem pertence a Silvia Belli.

Pertence a outra esfera, que ao mesmo  tempo é eu e Silvia Belli e não é eu nem Silvia Belli. É de todos e de ninguém.

Como explicar, como traduzir a cultura? Como traduzir todos os significados  e sentidos? Como explicar a Silvia Belli que tudo que eu vivi, que toda a história que minha família e as pessoas próximas viveram antes mesmo que eu nascesse, me levou até ali, nascendo em 1992 e estando ali em 2008, de frente com Silvia Belli e sentindo tudo aquilo que eu sentia.

E penso: como poderia dizer, se pensei e vivi e senti tudo aquilo? Ou não deveria? Mas se senti, por que não dizer? Seria muito estranho mandar uma declaração de amor para Silvia Belli? Dez anos depois. Silvia Belli, nunca te esqueci. Queria te encontrar talvez numa outra história, numa outra fantasia. Queria te encontrar talvez num sonho, num lugar que você entendesse tudo isso que eu penso e sinto.

Certas pessoas têm essa importância além. Esse quê. Isso que eu chamo de cultura encarnada. Que produz história, sonho. Pessoas desconhecidas. Ou conhecidas, mas que traduzimos em outro conhecimento. Quando são reais, dá mais vontade ainda de se declarar. E por pra fora a fantasia.

Dez anos depois, sigo sem saber o que fazer com Silvia Belli.

amor low carb

low cura

love cura

meia cura

1 1/2 love

 

AMOR LOW CARB

 

Não é ilegal, nem imoral nem engorda

não como amor carnal

só folhas e fibras

sem proteína animal

Não te como porque não como carne

só devoro pensamentos

engulo sua fumaça

agora só relações veganas

você vai ter que virar uma folha

ou até uma fruta

será que ainda tá verde

ou secou tal pecã?

 

Tem lances salada de frutas

secas

tem até em conserva

o amor é salmoura

solução de água saturada de você

igual descer do avião no Rio

gruda

cola

brisa paradoxal

sufoca

 

Vou seguir a receita que não há

tantos metros ou milhas

ou léguas submarinas…

sem medida

sal, açúcar, amor e loucura

conta-gotas…

Quero ir além

dessas convenções

jogar tudo loucamente

amor grudento

empedrado

bolo solado

farinha vencida

erva daninha

pesar fermento em milhas

pra ver se cresce astronomicamente…

anos-luz de amor mamão com açúcar

nus, sãos e bem fodidos…

 

 

caderno novo

Você não sente falta do que a gente fazia?

Tomar banho e meter.

Acordar de manhã com um beijo meigo.

Dar presentes

Bilhetinhos

Ir ao cinema e comentar depois

Comer de larica

Não sente?

 

Eu sinto.

 

Será que tanto faz?

Você desmembrou tudo isso, faz um pouco com cada um, e tá bem? 

Tá bom assim. Vai ver nem era comigo.

Nem era com você. Essas coisas são gostosas mesmo. 

Com qualquer um?

 

Ou vai ver que você nem gosta mais de nada disso. 

Ou faz com outras pessoas coisas que agora você até prefere.

Ou vai ver que sente minha falta. 

E das coisas boas que fazíamos. 

Mas não quer a parte ruim.

 

Tenho te entendido melhor agora. 

 

Na cidade grande, tudo é estímulo, pressa, pessoas, ofertas de tudo, sem tempo, corrido, tudo exacerbado, festa, loucura, tentações de toda sorte, tenho conseguido entender melhor suas atitudes. 

Entendo melhor o que você consegue e o que não consegue. 

Entendo por que continua solteiro.

Entendo por que é a crise de toda uma construção de identidade. De uma crença. De hábitos. De padrões. 

Entendo porque também tenho vivido isso. 

E questionado tudo isso em mim. 

 

Não sei como, e sinto muito ao pressentir que é impossível, mas eu gostaria tanto que algum dia fosse possível que a gente se reencontrasse. Que as ondas se encaixassem de novo.

 

Ou então que eu conseguisse definitivamente superar você. 

 

Superar que acabou.

E conseguir sentir de novo o que eu senti.

Não ter vergonha de gostar,

De ser carinhoso,

De acreditar no amor,

Numa relação íntima e profunda,

Na convivência,

Na troca.

 

Isso era lindo. 

 

Não ter que lidar com todas essas questões tão superficiais e tolas que surgem na falta de intimidade, no casual. 

Poder se entregar, 

com afinidade, 

confiança, 

admiração, 

tesão, 

mergulhar em alguém.

 

Mergulhei tão profundo que ainda hoje às vezes sua onda me arrebenta. Queria entrar em você mas minhas correntes não passam mais no seu mar. você nem sente.

 

Ou sente?

 

Não sei se há relevância nisso. 

Pensei que você não entraria nesse caderno novo. 

Mas ainda quando penso no amor penso em você.

 

Assim, agora

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Esfrego uma a uma as cuecas e meias brancas. Ficar em pé no tanque cansa. Sigo esfregando, mesmo sabendo que elas nunca ficarão realmente brancas de novo.

Em cima de mim, a trepadeira. O vento bate e vem um perfume doce. Em cima da trepadeira, uma primavera sulferino vem se embrenhando.

A palavra sulferino me traz uma lembrança.

Estou sensorial. Mais do que de costume.

Essa mistura de estímulos, da água morna no tanque, do perfume da trepadeira, do sol quente, me concentro na lavagem e vou me lembrando. Cada coisa que penso me lembra outra coisa.

Entro, abro o forno, vem o cheiro da abóbora, o mesmo cheiro do ano novo. Lembro do meu pai abrindo a abóbora, tirando as sementes, e assando para depois rechear de camarão. Lembro do meu pai no tanque, não esfregando, mas limpando o peixe que trazia da pescaria.

Vejo a primavera sulferino. Gosto de abrir a janela e ver a trepadeira misturada com a primavera. Me dá uma sensação aconchegante. Toda vez que vejo uma primavera sulferino, volto à infância. Lembro dos papeis de seda pendurados na parede, na floricultura. Era difícil puxar uma folha sem que viessem várias outras junto. Eu ia na floricultura com os meus irmãos e ficávamos lá fazendo bagunça, em um mundo todo particular, nosso, dos nossos pais e dos funcionários. Sujinho, floral, sulferino, celoflor, todo um mundo particular que era só nosso.

Quando, em outubro do ano passado, eu pensaria que estaria aqui agora? Que teria tudo isso?

Nesse ano, perdi algumas coisas, pessoas, sensações, e ganhei muitas outras. E é assim a vida agora.

E quando estou em pé esfregando cuecas e meias, a vida é apenas isso. O sol, a água, as sensações. Também viajo com lembranças e sonhos, ainda sonho, ainda amo parte do que perdi, mas me concentro cada dia mais nas sensações. E assim é gostoso viver. Com as flores na janela, a amiga na rede, as meias e cuecas no tanque, as árvores do bairro, o carinho da família, o conforto de poder viver as experiências com mais calma e amparo.

Algo do passado ainda quero trazer para o presente. Mas por ora estou bem onde estou. Tenho muita coisa pra lavar. Muito pra sentir. No começo assusta sentir a vida nos levando. Mas estou aprendendo a gostar. E é nisso que estou concentrado.   

telhado

Toda vez que vejo esse telhado me dá um orgulho esquisito. Eu sempre quis construir nossa casa, com tijolos à vista, vigas de madeira, pontas, vidros. Anos depois, revejo o que vivemos, cada época, o que conquistamos juntos, e não tenho certeza do que sinto.

Das muitas noites viradas trabalhando, conseguimos nossa casa, um escritório pra mim, um estúdio pra ele, nessa casa fiquei grávida, nossa primeira filha teve um jardim pra brincar, um cachorro, depois veio o Nino, os dois brincavam na piscininha de plástico. Depois de um tempo fizemos a piscina de verdade, foi difícil de pagar. Fazíamos fogueiras no jardim. Depois fizemos a lareira de verdade. Olhando assim parece que conseguimos o que queríamos. Escolhemos as coisas meio juntos, cada um tentando emplacar algum elemento que gostava e fazia questão.Não sei se eu que queria, ou ele. Ou se um convenceu o outro. Ou se ninguém queria e era apenas o caminho que parecia natural. Olhando nosso belo telhado parece que deu tudo certo.

Mas ele também me faz lembrar das vezes em que quis ir embora, daquelas em que realmente fui, daquelas em que ele que foi. Não sei quem passou por essa porta na minha ausência. Quem deitou na nossa cama. Trocamos o colchão três vezes. Quem voltava, comprava um novo. Lembro dos períodos em que fiquei sozinha, dos vaivéns, do tempo que levou até que decidíssemos onde de fato nos fixaríamos, e da dúvida que sempre ficou no ar, de quem mais abriu mão, quem cedeu, pra quem isso foi melhor, em nome do quê, de quem. Do primeiro apartamento que alugamos juntos, começando nossas carreiras, depois os cursos e tempos fora, e sempre, sempre a dúvida. A dúvida transcende o lugar.

Na dúvida, nos amarramos. Querendo amarrar, querendo soltar, nos sentindo presos e gostando disso, ou sufocados e fugindo. Amarra sado, amarra cristã, laço livre hippie. Nossa rua, o caminho pra casa, fazendo todo o sentido do mundo ou parecendo um labirinto.

Olhando esse telhado não sei se algum dia a casa foi minha e se fui eu mesma, ou se ele colocaria qualquer outra nesse lugar. Ou se eu queria brincar de casinha. Não sei se a família que mora nessa casa é feliz. Ou se mora ali alguém sozinho. Ou que sonho terá erguido essas paredes. Não gosto de tijolos à vista. Essa casa é estranha. Por isso nunca consegui estar com alguém por mais de meses. Porque vejo telhados demais. Teria sido mais fácil se eu reparasse menos.

Medo e fascínio: sobre acertar as medidas

cazuza

Ontem fiquei sabendo que fui a um show do Renato Russo no Estádio do Guarani quando tinha três anos, assisti tudo montado em cima dos ombros dos meus pais, e segundo minha mãe “curti muito”. Saber disso me deixou feliz, na hora achei que uma informação dessa torna minha biografia mais interessante.

Hoje acordei pensando nessa revelação de ontem, sobre ter descoberto que estive nesse show.

Me lembrei de quando me disseram, mais de uma vez, que certas letras minhas parecem com as do Cazuza. Um dia desses minha mãe me contou que assistiu de novo o filme dele e me disse: “acho que se você tivesse nascido naquela época e naquele ambiente você teria sido artista e seria parecido com ele. Vocês têm coisas parecidas”.

E fiquei refletindo sobre tudo isso.

Sobre como é ser jovem, gay, e se propor a criar, a produzir algo criativo, subjetivo, tendo atrás e tão perto de si o peso de artistas como eles, Renato Russo e Cazuza, e tantos outros emblemáticos de uma época. Para alguém que nasceu nos anos 90, essas referências ainda eram muito pulsantes e estavam frescas na memória das pessoas. E eram contadas pelos mais velhos com muita emoção, todos muito tocados, marcados. E acabei sendo marcado também. Por esse fantasma da Aids, da rebeldia, da boemia. Medo e fascínio, de poder ser livre e de experimentar. O peso de sentir e a chance de ser pleno, para o bem e para o mal. Tudo parecia oito ou oitenta.

Quando era adolescente, pensar nisso me assombrava. E pensava bastante. Era — e ainda é — como se eu pudesse sentir a dor deles. Uma conexão. De certa forma acho que o medo das consequências das minhas escolhas, que acreditava ver refletidas no triste fim (pensava eu) deles, fez com que eu me afastasse de alguns desejos e não ousasse me aventurar. Coisa da qual me arrependo. Fui um adolescente obediente e rígido demais. Cheio de regras para mim e para todos. Mas ao mesmo tempo, quanto mais lia e pesquisava sobre outros tempos, sobre o movimento hippie, o tropicalismo, os anos 80, a liberdade sexual, artística, as revoluções e rupturas, mais me fascinava e mais me identificava com as pulsões criativas que sentia nessa manifestações. E por medo, fugia, me bloqueava. Era mais fácil me fechar. Pelo menos de mim, eu tinha controle. Era o que eu achava.

Lembro como ficava impressionado com os relatos do meu pai sobre os tempos de faculdade dele, no início dos anos 80. Ele estudava arquitetura, morava numa república com amigos, e se não me engano, eram mais 4, dos quais 3 eram gays. E naturalmente faziam muitas festas. Imagino como era entediante a vida numa cidade de interior nos anos 80. E naturalmente nessas festas rolava de tudo. Ele conta que um dos amigos namorava um cara que traficava, que chegava lá com grandes quantidades de cocaína. E que uma vez escreveram AMOR com pó em cima de uma mesa e, em dois, foram cheirando, cada um de uma ponta. Dessa república, só meu pai e mais um sobraram. 

Na minha cabeça assustada de adolescente, pensava “meu Deus, não posso ser assim, não posso fazer isso”. Para mim era um destino quase inevitável ter Aids. Era um fantasma mesmo. Nunca tentei evitar ser gay, pelo contrário, mas achava que devia ser um gay “careta”, e que quanto mais fugisse de um comportamento “marginal”, mais viveria. Mas percebia o quanto os artistas, boêmios, festeiros, eram geniais e os admirava. No fundo, não admitia as práticas mas desejava sentir o que achava que eles sentiam. E fui acomodando mal e porcamente essas “categorias” em lugares opostos dentro de mim.

Com a maturidade dos anos e das experiências que tive, aprendi aos poucos a dar pesos mais equilibrados pra essas medidas, e a entender que nem tudo é o que parece, nem tudo o que parece é, e que podemos ser um pouco de cada, podemos ser vários, como quisermos, e nada é definitivo.

Nem todo boêmio é genial, nem todo sexo é sensacional, nem toda cocaína é transcendental, nem todo careta é saudável, nem todo trabalhador é honesto, nem todo monogâmico é sensato, Cazuza não é só gênio ou só devasso, nada é só um. Tudo é muito. E precisamos fugir dos estigmas, das interpretações historicamente fantasiadas, das crenças inabaláveis, da rigidez de sempre não tentar ou da imposição de sempre experimentar. Cada um tem sua medida. Custa, mas aprender a acertar a sua é prazeroso.

estudo do meio (coisa de mim)

 

No ponto da praça, a angústia do ônibus que não vem, e quando vem às vezes demora a sair, e quando sai pode ficar parado em Vila Isabel do começo ao fim, ou com sorte correr vazado por baixo do viaduto. O sol forte queima, apressando quem espera. Motoristas e cobradores indo e vindo, com suas bolsinhas de troco e seu controle de passageiros, vão ao banheiro, esticam as pernas, fazem um lanche, entram pela frente, por trás, em dupla, em trio, vários personagens funcionais azuis eufóricos como num passeio da escola.

Na minha escola os passeios eram chamados de estudos do meio. Coisa do construtivismo. Em casa, os trajetos de carro pela cidade da infância eram visitas guiadas, explorações das construções, das plantas, do desenho dos carros, do nome das ruas, do texto dos outdoors, das roupas, dos passantes. Coisa de pai arquiteto. Coisa de mãe curiosa.

Vivo um estudo do meio. Observo, fotografo, absorvo e anoto tudo. Sou um aluno aplicado.

O 436, quando passa, quando sai e quando anda, é uma grande excursão. Estética e terapêutica: nele já me preparo para a análise. Aliás, estou sempre preparado para a análise, esta e aquela.

Suando as costas contra o plástico do assento do ônibus sem ar, vou chacoalhando, claro, mas vou no altinho. Na janela. Pronto para ver tudo do alto. Com o celular pronto para disparar. Com a mão pronta para resgatá-lo de um ladrão. Pronto para a viagem.

A viagem é confusão no pontilhão de São Cristóvão, confusão no sobe e desce perto da Cidade Nova, é tudo cinza, concreto, galpão, barracão, estacionamento, é pichação, motel, calçada deserta escaldante, casarões do Rio Comprido. Casarão que virou CCAA, casarão que virou Subway, casarão que virou pet shop, casarão à venda, casarão para alugar, casarão abandonado, janelão de prédio dos anos 50, janelão dos 60, dos 70, janelinha dos condomínios de gesso, janelinha, janelinha. É tudo isso embaixo e o viaduto em cima. No fim, o sprint na subida.

E escuro. 760 metros no escuro. 100 no claro. Mais 2040 no escuro. 2800m sob pedra.

E então luz, muita luz, tudo muito, muito verde, muito céu muito azul, muito sol na água de espelho, muita brisa batendo, a volta toda na lagoa. Me enche o peito tudo, encho os olhos de olhar, a cabeça tilinta de beleza, o coração brilha. Seu Rodrigo, o senhor está de parabéns.

E na chegada, a bossa. Enche meus ouvidos. Não essa. Aquela, que tanto ouvi.

E passam madames com cachorros, personagens executivos funcionais e suas sapatilhas com lacinho, e bolsas e smartphones gigantes, gringos perdidos com suas garrafas de água, funcionários fumando do lado de fora, e alguns: velhos, fashionistas, enrustidos sarados, pedintes, garotas Farm, livraria, cabeleireiro, Casa Reis, Rei dos Plásticos, Ipanema 2000. Vamos lá, Gabriel? Sim, Lacan. Vamos aos outros meios, pois.

A viagem é o meio para o fim.