O vento
Com os olhos fechados, por dentro das pálpebras, vejo uma luz clara, feixes instáveis, vou embarcando, vou me perdendo. Sinto algo semelhante a uma tontura e me vou. É gostoso. É uma das sensações que gosto de perceber no corpo.
Nesse estado tenho as mais loucas ideias. Não que sejam tão loucas assim. Na verdade acho que essa tontura entre sonho e realidade, entre estar acordado e dormindo, é quando se amarram os desejos, quando a história se fecha, as cenas se compõem.
Falo por dentro o que não tenho coragem, o que não tenho com quem dividir, nem comigo mesmo acordado. O que dorme e sonha fala sozinho. Acordado, os desejos não cabem.
Nesses segundos me conecto comigo, com minha fantasia, e de certa forma isso me parece ser algum tipo de fé. De ritual. Como se rezasse. Evoco algo em mim. E sinto aquela chamazinha lá longe, aquela crença lá no fundo. “Vai que se eu pedir bem forte acontece”. Não peço a Deus. Acho que ne acredito em Deus. Nessa hora peço a mim mesmo. Os dois que existem em mim conversam. Aliás, são muitos mais que dois. São, em primeiro lugar, na camada mais perto do acordado, o sensato e o sonhador, e lá longe, perto do alto de onde irradiam os feixes claros, todos os eus que já fui e os que sonho ser. É uma grande reunião. É isso a religião. Reunir, religar. Logo, posso dizer que para mim há algo de religioso em sonhar.
Hoje sonhei – quando digo que sonho, me refiro a essa iluminação – com tantos sentimentos misturados. Percebo que acesso essas camadas quanto mais vazio e perdido me sinto.
Me lembro da viagem a Córdoba e num looping alucinado vou de pessoa em pessoa, de lembrança em lembrança. Cheguei a Córdoba e senti o estranhamento daqueles dias. Uma relação no ar, repentina e voadora, que estava com os dias contados e eu não sabia como me situar. E voltei para casa e estava tudo arrumado. Já não tenho certeza. Mas lembro de um grande desencontro e do Tintin tentando me agradar com uma tristeza nos olhos, isso vai acabar, gordo, talvez tenha me dito.
E de repente sinto o cheiro da fronha limpa, perfumada, lembro das noites em que dormi com o Tártaro, voador como o Tintin, um bom coração e um imenso fogo no rabo, e imagino um grande trio. Todos transando. Ele, o Tintin, e, por que não, todos aqueles com quem transei ultimamente, numa grande orgia em que meu próprio corpo não tem muito sentido nem presença, me sinto num grande vendaval, uma ventania em mim, não dá tempo de entender nada. Como no ônibus, indo para o aeroporto, não tenho tempo de entender.
Todas as vezes em que quis rever o Rafael e voltar, tentando aterrissar, aterrar, agarrar, era como uma pilha de jornais se abrindo com o vento batendo e eu tentando pôr uma pedra em cima. Um peso. Não acho que fosse para eternizar, porque no fundo não tem muito a ver comigo a eternidade, mas sim um imenso ímpeto de entender. Para dar tempo. Para parar um pouco a ventania. Para não ficar para sempre com o olhar no ar como última lembrança. Por isso voltei tantas vezes acordado e minha mente ainda volta em sonho.
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Nesse ponto me imagino com o Rafael diante de um espelho hipotético. Os dois parados, de pé. Chego por trás dele e dou um beijo no pescoço. E aperto. E ali ficamos, parados, vendo aquilo. Sem nada de traição ou luxúria. Como um experimento de intimidade, um estimulador de emoções, um teste do coração.
– Posso tirar uma foto?
Ele ri seu riso sapeca, meio sem jeito tentando disfarçar a sem-gracisse, meio debochado como se dissesse “você é engraçado” como tantas vezes disse, meio desconcertado, rindo para não entregar que minha graça o desconcerta e que se surpreende por ainda gostar disso.
– Uai, gab. Pode, claro.
Pode. Lógico que pode. Pode tudo. Temos licença eterna para tudo para sempre.
– Quero olhar depois e ver como ficamos, o que vejo, o que sinto. O que tem na imagem.
O desconcertei. Não fui romântico. Estou testando.
Imagino esse espelho, um abraço, esse teste dos toques. Será que esse lugar que um tem no outro é gostoso para sempre? Será que tem algum código secreto que os nossos corpos falam? Será que sempre que ficam lado a lado começam a conversar? Se entendem além de nós? É compreensão das moléculas? Conversa atômica? Carinho cardíaco?
E venta dentro de mim. O vento me leva. O vidro da Kombi está aberto. Entra vento pela janela. Estou parado com o pisca-alerta ligado em frente à farmácia, praticamente dentro de uma enorme monstera, no canteiro da esquina.
Aquela espera dura horas, incontáveis ventos. Não quero estar ali. Me sinto completamente desconectado. Sem sinal, de tanto vento. Me chama outro lugar, mas não tenho recursos, nem ânimo, nem a menor condição de enxergar qualquer saída. Só o vento dentro de mim. E eu. Sem entender nada.
Por que não para nunca de ventar?
Então sinto o cheiro da fronha, de roupa de cama nova, e me lembro de todas as vezes em que estive ali com a cara na monstera. E percebo que agora estou com a cara na fronha, num quarto novo, num lugar em que construí coisas e ao qual atribuí sentidos, do qual tenho novas memórias. Me angustia não saber por mais quanto tempo vou poder estar aqui. Me dá medo que o vento me leve de novo. E que tudo seja jogado no ar e eu não consiga pegar nada. Não quero de novo entender só depois.
Penso que igual ao dia da monstera, em que o sinal abria e eu não sabia como arrancar, agora sei que estou outra vez diante do nada, mas que em pouco tempo lembrarei dessa noite de insônia angustiada – da carência de sentido e perspectiva – e o cheiro da fronha limpinha será a nova monstera.
Sei disso.
Custa apaziguar as correntes de ar. Aprendi que sei viver. Me viro. Me vivo. Tudo bem.
Mas queria muito que todos esses ventos se encontrassem e voassem juntos para o mesmo lugar. Para dentro de mim. Dentro da minha imensidão. E que eu mesmo me agarrasse. Sem precisar de espelho. E que assim a vida fosse uma só, na madrugada e durante a tarde, sonhando e acordado.