Gabriel Demasi

“Heartstopper”, a síndrome do bom menino e a importância da tal da representatividade

Ainda dá tempo de falar sobre “Heartstopper”? Sim, e explico o porquê: porque discutirmos a tal da representatividade nunca é demais, e suponho que nunca deixará de ser necessário.

Depois de ler muitas coisas por aí sobre a série da Netflix, adaptação de uma trilogia de HQs escrita pela inglesa Alice Oseman, ontem decidi finalmente assistir. Comecei despretensiosamente enquanto jantava, fui fazer outras coisas, antes de dormir pensei “ah, vou ver mais um pouquinho” e quando dei por mim já eram 4:30 da manhã, eu já tinha chorado horrores e terminado todos os episódios. A série tem o clássico enredo de um romance água com açúcar adolescente, mas os protagonistas são um casal de dois meninos. Apenas. E isso é muito importante. Porque emociona muitas pessoas LGBTs como eu, na faixa dos 20 e tantos, 30, ou mais. Porque mostra o que é tão singelo mas pra gente, na nossa adolescência, era impossível. Sem tragédia – apesar do bullying, é claro – os dois adolescentes vivem um amor possível.

Agora volto à representatividade. Uns dois meses atrás, numa viagem, de repente me deparei com quatro homens, brancos, cis, héteros, na faixa dos sessenta anos. Pessoas progressistas, que tiveram acesso a educação, cultura, que viajaram. Um deles até psicólogo. E nas conversas com eles, quando discutíamos sobre as angústias da minha geração, acabamos chegando no assunto de ser uma criança ou adolescente gay. E pra mim ficou claro que, por mais incrível que pareça, por mais que às vezes na nossa bolha a gente ache que isso já é batido, já foi superado, não, não é. Muita gente, eu diria até a maioria da nossa sociedade, além de aceitar, respeitar ou não a questão LGBT, não faz ideia de como isso afeta a individualidade, de como forma nossa subjetividade, muitas vezes deixando marcas não muito legais e causando angústias. Então quando falo aqui de representatividade, além de ter exemplos que nos representem, é preciso também narrar. Falar, falar e falar. Repetir de novo e de novo. Isso também cria uma representatividade. É bom para os outros, que podem evoluir, e para nós é até terapêutico.

Por falar em terapêutico, no início do ano, falou-se muito na “síndrome do bom menino”, com o gancho do Vyni, participante do Big Brother Brasil. Em suma – num resumo radical nada científico meu – esse fenômeno seria a consequência de toda a repressão, bullying e desconforto que a criança passa desde cedo, quando começa a se perceber diferente da norma, e geraria na idade adulta uma dificuldade de se colocar, se impor, dar suas opiniões e se expressar livremente. A criança gay (que ainda nem sabe o que é ser gay) cresce e, para não sofrer mais, reprime sua “essência”, sua potência, e vive, assim, uma versão contida de si. Chegamos aos trinta achando que tudo isso ficou para trás, que é página virada, tentamos até acreditar que não foi tão ruim assim. Mas não há cura sem a fala. Superar os traumas passa necessariamente por recontá-los até reacomodar as coisas num lugar menos doloroso.

Sem querer entrar no mérito psicanalítico, o qual não domino, me permito relacionar esses pontos que levantei aqui. “Heartstopper” mostra uma realidade na qual essa “síndrome do bom menino” não teria mais cabimento, e por isso emociona e mobiliza forças tão poderosas dentro daqueles que, como eu, não se enxergavam nas representações de mundo, de afeto, de pertencimento, de coletivo. Aí está a importância da representatividade – muito além de um clichê esvaziado do mercado, ela é a possibilidade de recomeços, e pensando bem, até de reparação histórica. Para os adolescentes de hoje, como minha irmã, de quinze anos, que foi a primeira a me indicar a série, felizmente há outros exemplos, outras ficções mais gentis. Nós, os adolescentes dos anos 90, 2000, podemos falar, falar e falar, na terapia, com os amigos, no ambiente de trabalho, falar até criar novos presentes. O passado já passou. O presente nos pertence. E o futuro… Para o futuro podemos deixar novas histórias.

Na imigração e outras tragédias sem aspas

 Hoje faz um ano que vivi uma experiência forte.

Depois disso, tanta coisa aconteceu. Coisas muito, muito fortes. Que definiram a vida de milhões de pessoas, milhões de famílias. Ou melhor, a morte definiu a vida dos que ficaram. Quando me perguntam, ultimamente, se estou bem, respondo que bem, com aspas. Essa minha tragédia tem aspas também. Mas essas outras tragédias que têm acontecido, essas não, não têm nenhuma aspinha, e são de tamanha gravidade que sinto até vergonha de ter tido medo, de ter ficado sem rumo, de ter me sentido azarado ou até discriminado.

Miguel, João Pedro, George Floyd, os meninos de Paraisópolis: Marcos, Denys, Gustavo, Dennys, Gabriel, Mateus, Bruno, Eduardo, Luara. Todos mortos. Sabemos por quem.

No Brasil, oficialmente, 180 pessoas são assassinadas diariamente. 75% delas são negras. Sabemos que o número é muito maior. A famosa subnotificação. Bom eufemismo para conivência.

O que me lembra outra tragédia: mais de 47 mil mortes registradas por Coronavírus no nosso país. Também sabemos muito bem quem se expõe mais, quem consegue atendimento médico e quem morre sem nem ser diagnosticado, de caixão fechado, quem tem que pegar o transporte público, quem está mais vulnerável. Enquanto isso, estamos há um mês sem Ministro da Saúde. E o Queiroz estava escondido na casa do advogado do Presidente da República.

Estamos em casa há três meses. Ano passado, nessa data, eu estava preso num espaço de mais ou menos 50m2 com outros homens estrangeiros barrados em Barcelona. Minha revolta na época, de latino-americano negado, impedido de entrar, vale nada ou muito pouco diante de todo o absurdo que temos vivido. Mas serviu. Virou uma revolta muito maior. Não penso em viajar tão cedo. Mas derrubar o Borba Gato, nisso tenho pensado muito.

Abre aspas.

Às 17h do dia 19 de junho de 2019 saí do Aeroporto Internacional de Guarulhos. No dia 21, às 20h, estava de volta. Nesse meio tempo, estive retido na Imigração em Barcelona.

Levava comigo meus 27 anos e meu violão, companheiro de tantas viagens. Vestia uma calça xadrez de flanela, confortável para a viagem, e um moletom preto de capuz.

Depois de dois anos de formado, um término amoroso, mudanças de cidade, de trabalho, eu buscava desesperadamente alguma saída. Na época entendia que era pra fora. Decidi viajar, ficar na casa de uma amiga em Barcelona e ver o que acontecia. Não pensava exatamente em ficar ilegalmente no país, mas também não estava exatamente legal. Podia ser que ficasse.

Tinha a passagem de volta para dali a três meses. Levava aproximadamente mil euros, que eu pensava que durariam cerca de um mês. Para o resto do tempo, me viraria. Tocando, trabalhando em algum bar, fazendo algum bico, eu ainda não sabia como. A única coisa que sabia é que podia ficar na Europa como turista por três meses, e essa era a única regra à qual me ative.

Tudo transcorreu bem, sem atraso, sem nervosismo, nenhum atropelo ou imprevisto. Desci do avião e fui em direção à fila. Do outro lado, os cidadãos europeus. Do meu lado, todos os que vinham de outros lugares. Em um dos guichês havia uma policial mais simpática do que as outras. Jovem, cabelo loiro preso. Sorridente até. Ela me chamou.

–¿Cuánto tiempo te quedas?

–Noventa días.

Aí ela fez aquela cara de “eita”, essa expressão brasileira tão incrível. Eita. Mas quanto dinheiro você tem? Eu expliquei, mostrei o dinheiro e a passagem de volta.

É muito tempo, o que você vai fazer, vai ficar onde, só um minuto, vou chamar meu superior, me acompanhe por favor.

E dali em diante permaneci vigiado ou preso.

Na primeira sala levei um chá de cadeira, outra expressão brasileira incrível. Outra policial. Um longo interrogatório. Precisa de intérprete? Não. Sua mãe é argentina? Não. Todas as perguntas de novo.

Ligou para a amiga que ia me hospedar. Ela confirmou que estava me esperando. Levou dura por telefone.

–Olha, senhora, vejo que a senhora é viajada, estudada, está aqui há três anos já… Deveria saber que as coisas não são assim, não é só receber qualquer um assim. A senhora tinha que fazer uma carta de invitación, atestando que ele fica na sua casa e se responsabilizando.

Mais perguntas. Eu disse que tinha aquele dinheiro em mãos, que era pouco, mas que minha família me mandaria mais. Que estava esperando o resultado de uma bolsa de estudos que estava pleiteando em uma escola em Barcelona, mas que ainda não havia nada certo. Disse também que em uma semana iria para Paris visitar outra amiga. Que havia morado na Europa há dez anos e tinha muita gente pra visitar. Mostrei as passagens para Paris.

–São muito legais suas amigas, hein. Te convidam, pagam as coisas para você…

Ao longe, ouvia as conversas dos outros policiais, aquele clima de escritório, de repartição pública, que, descobri então, ser universal! Pelo menos ibérico, certamente. “Todo dia agora é isso. Deixa os brasileiros entrarem!”, zombava um policial.

–Bom, Gabriel, por mim eu até deixava você entrar. Mas quando você chegou aqui o meu chefe estava, tinha muita gente, eu não posso simplesmente deixar você entrar. Aqui não é o Estados Unidos, não. Nós só exigimos duas coisas pra entrar, dinheiro e a carta de invitación, e você não tem nenhuma das duas! Agora que já abrimos esse procedimento, você vai ter que esperar na sala. Você vai ficar lá, tem cama e você pode tomar banho. E vão te levar comida. Depois vem um advogado para te ajudar e vamos decidir se você volta ou não.

Dois policiais me acompanharam, fomos buscar minhas malas. Perguntei se podia ir para algum lugar em que pudesse fumar. Não. Já estava há quinze horas sem fumar.

–Eu também fumava. Não posso quebrar o protocolo só para você ir fumar. Não sei como é no seu país, mas aqui não se pode fumar em locais fechados. Mas veja isso como uma boa oportunidade para parar de fumar!

Me levaram até a sala. Confesso que até esse momento eu não tinha me tocado que pareceria uma prisão. Não sabia o que esperar. Alguém abriu a porta e lá fiquei. Um corredor com três ou quatro portas à esquerda, onde ficavam os quartos, à direita o banheiro e ao fundo uma espécie de sala, com uma mesa no centro. Tudo sem janela, fechado. Uma grade atrás da mesa.

Lá procurei um quarto livre e me instalei. As paredes totalmente pichadas. Vários idiomas. Desenhos. Frases. Desabafos. Falas de pessoas que estiveram ali. Datas de permanência.
Com nojo do colchão, deitei mesmo assim. Estava exausto e em choque. Não quis abrir a mala. Coloquei meu agasalho sobre o travesseiro, me estiquei e dormi. Do lado de fora, sete ou oito colegas de reclusão andavam, falavam suas línguas, ligavam para pessoas, andavam de um lado para o outro. Homens da Geórgia, Turquia, Filipinas, Albânia, Colômbia, Peru. E eu.

Seis horas depois, gritam meu nome. Era a advogada.

Fomos a outro escritório da polícia. Eu expliquei de novo tudo o que tinha acontecido. Ela disse que não tinha nada a ser feito. Dei o depoimento oficial para outro policial, que registrou tudo o que eu disse. Eu disse que minha mãe poderia ir ao banco mandar dinheiro e que minha amiga poderia vir me buscar e assinar a tal carta. Ele disse que eu deveria ter feito isso antes.

–O que você está dizendo pode até ser verdade, mas você tinha que ter feito isso antes. Se nós formos esperar a família de cada um de vocês resolver as coisas em seu país, quantas pessoas vão ficar esperando aqui? Vou até o delegado que vai dar a palavra final.

Voltou, você vai voltar, assina aqui, aqui, aqui, seu passaporte fica comigo, vamos entregar ao comissário de voo, você volta amanhã. Eram 17h. Teria que passar a noite lá. O voo era no dia seguinte às 12h.

 –Mas veja, nada te impede de voltar de novo, com todos os pré-requisitos certos. Você pode entrar normalmente.

De manhã, fui levado de viatura até o avião, por dois policiais muito alegres, que cantavam, faziam piadas, estavam mais preocupados em mostrar stories legais um pro outro. Entrei depois de todos os passageiros comuns, pela porta de trás do avião.

Depois de um filme atrás do outro no avião, totalmente zumbi, sujo, ferido, sem entender nada, na noite do dia seguinte, fui recebido pela polícia federal brasileira, que pegou meu passaporte com a comissária e não tinha certeza se dava baixa, alta, entrada ou saída. Nada daquilo fazia muito sentido. Eu não era nem propriamente um hippie, nem um playboy, nem um traficante. Eu não era nada. Era só alguém perdido e desavisado. Ingênuo, talvez. Prepotente, talvez. Na dúvida, passaporte pra lá, passaporte pra cá, mais uma revista na mala. Só tinha goiabada, café, coisas do Brasil que levei para presentear.

Depois de mais de 30 horas sendo tocado por todos os tipos de corredor e passagens, guichês, salas, saletas, celas, cancelas, catracas, cruzei a linha da imaginária liberdade. Me esperavam no desembarque minha mãe e meu irmão. Minha mãe carregava um balão inflável preto (próprio pra ocasião) onde estava escrito a mão: “Tamo junto, Gabri”. Depois disso, aí sim, meu ano começou.

Fecha aspas.

Adriana Calcanhotto em todos os sentidos

Adriana Calcanhotto lançou, no fim de maio, o “Clipão da Quarentena”, um clipe de 28 minutos em que ela canta e performa as nove canções de seu novo álbum, produzido  durante o isolamento. De todas as faixas, uma circulou mais nas redes sociais, fora do contexto do Clipão: o “funk da quarentena”.

Quando assisti o Clipão, fiquei embasbacado com a força da câmera e da iluminação. Foram minutos de deleite visual. Depois, comecei a ver o vídeo do funk sendo compartilhado nas redes e vi críticas à cantora. Para algumas pessoas, aquela proposta não tinha sentido e até causou certa “vergonha alheia”. Uma mulher branca, uma “intelectual”, fazendo funk? Tão distante do lugar de fala de alguém que vive o riquíssimo e complexo universo do funk? É, de fato, não tem muito sentido e dá vergonha alheia.

Adriana Calcanhotto no “Clipão da quarentena”

Quem sentiu isso tem toda razão. Não se pode questionar a legitimidade de um sentimento. Sentiu, tá sentido. Não pretendo, aqui, dissuadir ninguém. Minha intenção é vincular esse funk, isolado, à trajetória da artista, para inserirmos uma peça no contexto de uma obra maior. Até chegar ao Clipão da quarentena, Adriana percorreu um longo caminho, sempre de muita curiosidade, pesquisa, pluralidade. Ela revira essas gavetas da cultura brasileira como ninguém, e sempre buscou fazer isso, e, espero, continuará fazendo. Compositora que sempre evoca as águas, ela mergulha nos mares de diversos gêneros, estilos e linguagens.

Adianto que não escrevo do lugar de crítico ou músico. Ou especialista. Não pretendo fazer uma cronologia ou uma análise histórica. Falo do ponto de vista de um amante da arte, comento algumas coisas que sei sobre Adriana e sua carreira, e falo, principalmente, enquanto grande fã. Afinal, todo filho de mãe sapatão, nascido nos anos 90, tem um enorme carinho por Adriana Calcanhotto. Ouvir a voz dela é lembrar de todos os CDs que ouvimos no carro, nas viagens, nos finais de semana em casa. E continuar acompanhando seu trabalho e me deparar com suas novas experimentações é um grande prazer.

De onde vem

Gaúcha, quando surgiu, no fim dos anos 1980, Adriana a princípio foi muito comparada a Elis Regina, sua conterrânea. Tinha os cabelos platinados e um visual irreverente, diferente do que se via no mainstream da época. Nas primeiras gravações, ela cantava mais gritado, o que aos poucos ela foi deixando de lado até chegar a algo cada vez mais autoral e confortável. Em seu primeiro álbum, Enguiço (de 1990), Adriana gravou alguns clássicos, canções de seu repertório afetivo ligado ao bolero e ao samba-canção, de Lupicínio Rodrigues a Carmem Miranda, passando por Roberto e Erasmo, entre outras pérolas dos áureos tempos do rádio.

Em 1992, ano em que nasci, ela lançou Senhas, álbum que continha “Esquadros” e “Mentiras”, sua primeira canção a ser tema de novela, que estourou no rádio. Ali já vemos na arte gráfica sinais de uma pesquisa estética, plástica, que ela mesma anuncia no verso “cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo”. Desde então, as capas de seus discos nunca são “tanto faz”. Adriana também fala com as capas. Senhas tem uma capa linda, toda vermelha, com uma foto sua de perfil, em preto e branco, e tudo escrito em letra de forma. A partir dos discos seguintes, ela escreve nos encartes com letra de mão, uma marca registrada que perdura até hoje.

Capa do álbum Senhas, de 1992

Em 1994, com A fábrica do poema, me parece que Adriana esquece qualquer preocupação mercadológica e se encontra, definitivamente, na poesia. Ela firma parcerias com Arnaldo Antunes, Wally Salomão, Antônio Cícero e outros grandes poetas.

Para onde vai

Quatro anos depois, Maritmo. Assim mesmo, mar e ritmo. Ela inaugura uma série de obras que falam do universo do mar e do movimento. Um pouquinho de astrologia: Adriana é libriana, e encarna perfeitamente o arquétipo do signo, associado à beleza, à imagem, ao equilíbrio das cores e formas. A capa de Maritmo é mais uma obra de arte. Também em cores primárias, um azulão e um vermelhão chapados, e o movimento da roupa dela.  Nesse álbum, ela homenageia Hélio Oiticica, em “Parangolé Pamplona” – que aparece também alguns anos mais tarde, no clipe de “Pelos ares”, gravado dentro de uma instalação de Oitica – e experimenta, nessa faixa e em “Pista de dança”, elementos de dance music. Ela também testa o uso de samplers, em “Vamos comer Caetano”, faixa em que ela brinca com Caetano Veloso. Adriana é uma artista iconoclasta.

Capa de Maritmo, de 1998

Em 2000, seu icônico disco ao vivo, Público. Além de faixas muito conhecidas, que tocam até hoje nas rádios – “Devolva-me”, “Mais feliz”, “Vambora” –, nesse show Adriana já apresenta seu espetáculo tão particular. Ela toca, dança, batuca, faz beat box, declama. Musica o poema “O outro”, de Mário de Sá Carneiro, parceiro de Fernando Pessoa na emblemática revista Orpheu, lançada em 1915. Mistura épocas, estéticas, palavras, tudo.

Armar um tabuleiro de palavras-souvenirs.
Apanhe e leve algumas palavras como souvenirs.
Faça você mesmo seu microtabuleiro enquanto jogo linguístico.

Babilaque
Pop
Chinfra
Tropicália
Parangolé
Beatnick
Vietcong
Bolchevique
Technicolor
Biquíni
Pagode
Axé
Mambo
Rádio
Cibernética

Celular
Automóvel
Buceta
Favela
Lisérgico
Maconha
Ninfeta
Megafone
Microfone  

Trecho de “Remix Século XX”

Cantada, 2002. Aqui ela faz uma espécie de crônica urbana, uma trilha sonora intimista e suave da cidade. Em “Pelos ares” ela flerta com o tango e com as batidas eletrônicas, quase um Gotan Project gaúcho. Ela convida os Los Hermanos para tocarem com ela. E o grupo Bossacucanova, na faixa “Jornal de Serviço”, em que lê páginas das antigas listas telefônicas. Com o piano ao mesmo tempo tão brasileiro e cosmopolita de Daniel Jobim, ela faz uma versão deliciosa de “Music / Impressive Instant”, de Madonna. Na capa, um beijo vermelho. Adriana não tem medo de mergulhar. E sabe o que está buscando.

Capa do álbum Cantada, de 2002

Em 2004, lança Adriana Partimpim, projeto muito delicado, colorido, feito “para crianças”. Sorte das crianças daquele tempo! E dos adultos também. Tem qualidade em tudo que Adriana faz. Para esse disco, ela grava canções próprias, regrava músicas antigas, marchinhas, e faz muito sucesso com “Fico assim sem você”, de Claudinho e Buchecha. Ela cria um personagem, se fantasia, se maquia, pinta e borda. O disco ganhou o Grammy latino de melhor álbum infantil. Em 2009, ela lança o Partimpim Dois, e em 2012 o Partimpim Tlês.

Adriana Calcanhotto vestida de Adriana Partimpim, 2004

Voltando ao universo do mar, em 2008 ela lança Maré, e durante a turnê em Portugal ela escreve Saga lusa, livro em que relata episódios de delírio e insônia na viagem.

Em 2011 ela parte para o samba. É infectada por um bicho, o Micróbio do Samba, que lhe dá vontade de compor à moda antiga. Com seus ótimos músicos – Alberto Continentino no baixo, Domenico Lancelotti na percussão, e participação de Rodrigo Amarante na guitarra –, mescla elementos clássicos do samba, toques eletrônicos, e sempre, sua poesia sussurrada.

Entre 2018 e 2019, essa se lança num projeto audacioso, antropofágico, inspirada pelo Manifesto da Poesia Pau Brasil, de Oswald de Andrade. Na turnê de A mulher do Pau-Brasil, acompanhada por Bem Gil e Bruno di Lullo, ela surge toda de vermelho, num cenário minimalista, com redes penduradas.

Adriana em show de A mulher do Pau-Brasil

O espetáculo, que ela chamou de “concerto-tese”, foi como a conclusão de sua residência artística na Universidade de Coimbra, onde desde 2015 ministra a disciplina “Como escrever canções”, na Faculdade de Letras. Fundada em 1290,  a Universidade de Coimbra é uma das mais antigas do mundo ainda em atividade. Adriana vai a Portugal para entender e articular passado e presente, e suas letras desse período culminam num show explicitamente político, engajado, uma espécie de crítica histórica e social em forma de colagem poética.

Abro parênteses para um projeto paralelo sobre o qual vale a pena falar:

(Em 2018, surge Nada ficou no lugar. Dessa vez, Adriana é cantada. “Novos” nomes como Letrux, Duda Beat, Rubel, Jaloo, Baco Exu do Blues fazem releituras de grandes sucessos de Adriana, que mostra toda sua deferência às novas gerações, mostrando que entende que a arte precisa do velho e do novo para se reciclar, se retroalimentar).

Depois de alguns anos sem gravar em estúdio, em 2019 vem Margem, ecoando Maritmo (1998) e Maré (2008).

Aqui gostaria de fazer a ponte para voltarmos ao assunto inicial desse texto. Pois é nesse disco que Adriana começa sua parceria audiovisual com Murilo Alvesso (Assum Filmes) que dirige, monta e concebe a fotografia de seus clipes.

Lembro que fiquei muito impressionado com a simplicidade e, ao mesmo tempo, a potência do clipe de “Lá lá lá”, do álbum Margem. Basicamente vemos Adriana sozinha, vestida de branco, numa sala. E ela vai pintando todas as paredes brancas do cômodo e pintando seu próprio corpo. Não precisa de mais nada. Só tinta azul. Um mar dentro de casa. Em “Ogunté”, também de Maré, vemos Adriana embalada num mar de plástico preto, ondas de saco de lixo, o feitiço da sereia pós-moderna.

Adriana no clipe de “Lá lá lá”, concebido e dirigido por Murilo Alvesso, 2019.

Por fim, esse ano, o álbum SÓ canções da quarentena. Em 11 dias, Adriana compôs 9 canções. Em 43 dias, o álbum foi gravado, produzido e mixado, tudo em pleno isolamento, no meio de uma pandemia, à distância, com seus amigos e parceiros espalhados pelo mundo. O tema da vez? O mar diante do qual estamos: amparo e desamparo, solidão, tempo, saudade, raiva. Fala de janela, de notícia, de panelaço. Do tempo do agora e da urgência de criarmos novas saídas.

Foi nesse contexto que ela produziu, com o Dennis DJ, do 2N Studios, o funk “Bunda lê lê”. Ela emprega “bundalelê” e “senta senta senta”, tão próprios do funk, fazendo um jogo com as palavras. “O que que faz na quarentena? Na quarentena o que que faz? Senta senta senta / Senta a bunda e estuda / Senta a bunda e lê lê/ E vai à luta”.  No clipe, vemos Adriana à frente, dançando e entoando essas quase palavras de ordem, e ao fundo vemos uma bandeira do Brasil, com o miolo em branco, onde são projetadas imagens de meninos que dançam o passinho e os motes que ela vai cantando.

“Bunda lê lê” se trata de uma artista multiplataforma, plural, que já mergulhou em tantos mundos e cenas musicais, e dessa vez escolheu o funk. Aliás, pertinente escolha para dar o recado, para aqueles que não querem ouvir outras vozes, e para aqueles que vão entender como ninguém. Fora de contexto, vemos uma mulher branca, a elite intelectual brincando de fazer funk. Com um olhar que abrange a trajetória da artista, vemos uma performer, uma criadora, compondo com ícones, símbolos e falando na linguagem mais atual e urgente que há no nosso Brasil de hoje. A revolução não será televisionada, será transmitida pelas redes sociais, e virá da favela. E ponto final.   

Agora gostaria de enaltecer o “Clipão da quarentena” enquanto obra audiovisual. O clipe, de 28 minutos, foi gravado no quarto de Adriana, em apenas dois planos-sequência, com somente duas pessoas além dela: Murilo Alvesso na câmera e Geovane Peixoto na luz. De novo, ela está sozinha, vestida de branco, num quarto todo branco. Vai performando as músicas uma em seguida da outra, sem parar, sem intervalos. Vai rodando. Vemos aos poucos cada canto do quarto se revelando. A câmera, instigante, vai e vem, pula pra frente e pra trás, de um lado pro outro. A luz, primorosa, ilumina com simplicidade e força, aumentando e diminuindo a artista, traduzindo e potencializando dos sentimentos mais profundos de solidão até a grandiosidade daquela pessoa que está ali e de repente vira gigante. Cama, aparador, ampulheta, estátua, confete, esses elementos pequenos e tão bem escolhidos vão aparecendo aos poucos e nos dando a noção do espaço. Os instrumentos também vão chegando, devagar, em cada canção, produzindo um grande tema sonoro comum. Tem poesia, tem dança, tem violão, tem samba, tem balada romântica, tem funk, tem fado. Tem janela, porta, rua deserta, Rio, Coimbra. Flashes de luz fria, relances de cor, projeções sobre as paredes e a cama, espelhos. Adriana, compositora sem eira nem beira, esplendidamente filmada e iluminada.

O que vemos ali é uma artista híbrida que está dentro de seu quarto e dentro do mundo. Falando sussurros e palavras de ordem. Acariciando e ameaçando com as palavras. Usando corpo, voz e imaginação. Adriana é arte de todo lugar, em qualquer lugar, com sombra, luz ou cor.  

Residência artística. Ou assentamento. Ou raiva

A quarentena pode muito bem ser uma residência artística. Uma casa é uma residência e se há nela alguma arte, ela passa automaticamente a ser uma residência artística.

Tomo sol deitado na varanda do apto artístico. Acho legal a sigla ser apto. É bem o que é mesmo, ou o que acharam que era, um espaço apto.

A avenca está voltando. Ela gostou do novo lugar. Não fui eu que pus ela aqui. Eu era a pessoa mais indicada pra isso mas não quis mexer com elas. Como consequência, a babosa que eu gostava de ver deitado na cama olhando pra fora foi deslocada, a avenca semi-aparece e na reta da cama ficou um vaso de zinco em forma de trapézio. Vazio. Vaso podia ser com z. O z é uma letra subutilizada.

Arrumei uma terapeuta japonesa. Fui no consultório duas vezes antes da quarentena, depois fiquei na moita e depois decidi tentar à distância. Sento na cama e ela chama com vídeo. Eu gostei, no fim das contas.

Ela diz “quando você vai respirar?”. Penso em responder que não respiro mesmo, fumo, que é respirar pra dentro, mas tenho vergonha e não digo. Tenho vergonha. Fumo sem parar. Fumo o dia inteiro. Estou completamente escravo, não consigo controlar a vontade ininterrupta. Aqui interrompo para buscar o tabaco na sala. Estou na varanda.

Mas não quero falar de novo – una y otra vez, aprendi nas preparações e fingi que sabia, eu finjo (não gosto do j) com frequência que sei as coisas, no fundo e não é que sei mesmo? porque ouço e já entendo – de mim e de mim. Nas residências artísticas todo mundo também só fala de si. Todo mundo só sabe falar de si, bruto ou com alegorias. Quando o mundo fala do mundo é alguém falando de si também.

Não variamos muito. Na verdade é tudo a mesma coisa, sempre, ciclos espalhados em espaços de tempo mas tudo é igual.

Tá, mas o que posso fazer com isso? A terapeuta diz que não é pra fazer algo com algo sempre. Eu respondo que é porque a dúvida me deixa aflito, e aflição é um problema, e quero resolver o problema.

É isso. Porque vivo tentando resolver um problema que nem sei o que é. Porque sou aflito. Vivo aflito. Acordo aflito porque tenho que acordar, durmo aflito porque tenho que dormir, meto aflito porque tenho que meter – acrescento depois: eu não sei brincar –, enquanto isso fumo e fico aflito porque preciso fumar mais.

Penso, penso, penso, mas nada se assenta. É claro, como que algum pensamento vai achar um lugar ok pra se assentar se eu não paro? Ia dizer turbilhão mas essa palavra me irrita, acho que dá ainda mais aflição.

As palavras me irritam e pensando bem não são as palavras. São as pessoas. Não contra elas, mas porque se elas falam algo repetidamente e sem se afetar com isso é porque o sentido do que elas querem dizer se assentou. E tenho raiva, raiva!!! Raiva das palavras, das pessoas, de mim mesmo porque nenhuma palavrinha se assenta em mim o suficiente para apenas ser sem mais. Porque o que penso, sinto e falo não cabe nem para em mim, é tipo uma revoada alucinada há infinitos anos sem decidir onde pousar porque nem sabe que está voando.

E isso me deixa profundamente irritado.

Vivo tentando consertar e pousar só um pouquinho.

É porque me sinto desprotegido.

E tenho raiva! Raiva! Na verdade só to pedindo socorro.

Mas isso, agora, escrevi com prazer.

“A longa viagem noite adentro”, Pedro Almodóvar

Antonio Banderas e Julieta Serrano passeiam pelo corredor da casa de Pedro Almodóvar em seu útlimo filme, "Dor e glória"(2019).

Antonio Banderas e Julieta Serrano passeiam pelo corredor da casa de Pedro Almodóvar em seu útlimo filme, “Dor e glória”(2019).

Até agora tinha me negado a escrever. Não queria deixar registro escrito das sensações que os primeiros dias de isolamento estão me provocando. Talvez porque o que descobri primeiro foi que a situação para mim não é tão diferente da habitual, eu que sou acostumado a viver sozinho e quase em estado de alerta, o que não é uma descoberta alegre. Nos nove primeiros dias me neguei a escrever qualquer coisa. Mas essa manhã li uma notícia que parecia capa de uma revista de humor negro: “O palácio de gelo se transforma em necrotério improvisado”. Parece giallo italiano, mas está acontecendo em Madri, é uma das “notícias sinistras do dia”.

Hoje completo 11 dias de confinamento. Me isolei na sexta-feira, 13 de março; desde então me organizo para enfrentar a noite, o escuro, porque vivo como um selvagem, no ritmo ditado pela luz das janelas e a varanda. Estamos na primavera e os dias têm sido verdadeiramente primaveris! É uma das sensações maravilhosas de cada dia, algo que tinha esquecido completamente. A luz do dia e seu variado périplo até cair a noite. A longa viagem noite adentro, mas não como algo ruim, e sim prazeroso. (Ou estou empenhado nisso, dando as costas para a agonia dos dados).

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Medo e fascínio: sobre acertar as medidas

cazuza

Ontem fiquei sabendo que fui a um show do Renato Russo no Estádio do Guarani quando tinha três anos, assisti tudo montado em cima dos ombros dos meus pais, e segundo minha mãe “curti muito”. Saber disso me deixou feliz, na hora achei que uma informação dessa torna minha biografia mais interessante.

Hoje acordei pensando nessa revelação de ontem, sobre ter descoberto que estive nesse show.

Me lembrei de quando me disseram, mais de uma vez, que certas letras minhas parecem com as do Cazuza. Um dia desses minha mãe me contou que assistiu de novo o filme dele e me disse: “acho que se você tivesse nascido naquela época e naquele ambiente você teria sido artista e seria parecido com ele. Vocês têm coisas parecidas”.

E fiquei refletindo sobre tudo isso.

Sobre como é ser jovem, gay, e se propor a criar, a produzir algo criativo, subjetivo, tendo atrás e tão perto de si o peso de artistas como eles, Renato Russo e Cazuza, e tantos outros emblemáticos de uma época. Para alguém que nasceu nos anos 90, essas referências ainda eram muito pulsantes e estavam frescas na memória das pessoas. E eram contadas pelos mais velhos com muita emoção, todos muito tocados, marcados. E acabei sendo marcado também. Por esse fantasma da Aids, da rebeldia, da boemia. Medo e fascínio, de poder ser livre e de experimentar. O peso de sentir e a chance de ser pleno, para o bem e para o mal. Tudo parecia oito ou oitenta.

Quando era adolescente, pensar nisso me assombrava. E pensava bastante. Era — e ainda é — como se eu pudesse sentir a dor deles. Uma conexão. De certa forma acho que o medo das consequências das minhas escolhas, que acreditava ver refletidas no triste fim (pensava eu) deles, fez com que eu me afastasse de alguns desejos e não ousasse me aventurar. Coisa da qual me arrependo. Fui um adolescente obediente e rígido demais. Cheio de regras para mim e para todos. Mas ao mesmo tempo, quanto mais lia e pesquisava sobre outros tempos, sobre o movimento hippie, o tropicalismo, os anos 80, a liberdade sexual, artística, as revoluções e rupturas, mais me fascinava e mais me identificava com as pulsões criativas que sentia nessa manifestações. E por medo, fugia, me bloqueava. Era mais fácil me fechar. Pelo menos de mim, eu tinha controle. Era o que eu achava.

Lembro como ficava impressionado com os relatos do meu pai sobre os tempos de faculdade dele, no início dos anos 80. Ele estudava arquitetura, morava numa república com amigos, e se não me engano, eram mais 4, dos quais 3 eram gays. E naturalmente faziam muitas festas. Imagino como era entediante a vida numa cidade de interior nos anos 80. E naturalmente nessas festas rolava de tudo. Ele conta que um dos amigos namorava um cara que traficava, que chegava lá com grandes quantidades de cocaína. E que uma vez escreveram AMOR com pó em cima de uma mesa e, em dois, foram cheirando, cada um de uma ponta. Dessa república, só meu pai e mais um sobraram. 

Na minha cabeça assustada de adolescente, pensava “meu Deus, não posso ser assim, não posso fazer isso”. Para mim era um destino quase inevitável ter Aids. Era um fantasma mesmo. Nunca tentei evitar ser gay, pelo contrário, mas achava que devia ser um gay “careta”, e que quanto mais fugisse de um comportamento “marginal”, mais viveria. Mas percebia o quanto os artistas, boêmios, festeiros, eram geniais e os admirava. No fundo, não admitia as práticas mas desejava sentir o que achava que eles sentiam. E fui acomodando mal e porcamente essas “categorias” em lugares opostos dentro de mim.

Com a maturidade dos anos e das experiências que tive, aprendi aos poucos a dar pesos mais equilibrados pra essas medidas, e a entender que nem tudo é o que parece, nem tudo o que parece é, e que podemos ser um pouco de cada, podemos ser vários, como quisermos, e nada é definitivo.

Nem todo boêmio é genial, nem todo sexo é sensacional, nem toda cocaína é transcendental, nem todo careta é saudável, nem todo trabalhador é honesto, nem todo monogâmico é sensato, Cazuza não é só gênio ou só devasso, nada é só um. Tudo é muito. E precisamos fugir dos estigmas, das interpretações historicamente fantasiadas, das crenças inabaláveis, da rigidez de sempre não tentar ou da imposição de sempre experimentar. Cada um tem sua medida. Custa, mas aprender a acertar a sua é prazeroso.

Júnia

Quem passava pelo corredor quadriculado do centenário colégio podia ouvir a voz firme de alguém que se exaltava. “Eu não sou dona de ninguém. Meu nome é Júnia. Júnia!”, gritava a professora. Aquele era o último lugar onde Júnia gostaria de estar naquela manhã arrastada de cinco anos atrás. Ela gostaria mesmo era de estar na varanda da casa grande da fazenda do marido que gostaria de ter, ou na piscina do clube do qual gostaria de ser sócia, relendo Clarice Lispector ou Lygia Fagundes Teles. Mas uma sucessão de atropelos, desencontros e insucessos levaram-na a viver uma vida de frustração, uma tragédia, na cabeça dela, e agora estava ali, dando aulas de português num colégio público, para alunos que a chamavam de “dona”, pelos quais não tinha a menor afeição. Amava a língua portuguesa, isso sim. Mas aqueles adolescentes, Júnia tinha até certo asco por eles, os achava burros, alienados, mal-educados, pobres – logo, inferiores – e por mais que nunca admitisse a alguém além de seus pensamentos, malcheirosos.

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Júnia nasceu no interior, numa família de classe média. Seu pai, filho de portugueses, gerente de uma usina, e sua mãe, Alba, veio recém-nascida de Gênova para o Brasil e era dona de casa. Júnia seria Júlia se tivesse nascido em julho, mas sua mãe entrara em trabalho de parto no fim da tarde do dia 30, pariu de madrugada, e seu pai sugeriu que a batizassem fazendo homenagem ao mês que ainda vigorava. Alba concordou.

Desde pequena, Júnia, que hoje tem 60 anos, fora míope, o que durante infância lhe tornara alvo de chacotas dos colegas e fez com que ela se refugiasse nos livros. Aprendeu a ler aos 4 anos, e aos 10 se orgulhava em dizer que havia lido mais de cem livros.

A tímida e séria garota sardenta dos cachos acobreados fez tudo o que era de bom tom, fez primeira comunhão, crisma e com 16 anos começou a namorar Rodolfo, filho do prefeito da cidade, que era mimado, rico, gentil com Júnia e gago. Um tolerava os supostos defeitos do outro. Rodolfo namorava a ruiva sisuda dos óculos de fundo de garrafa, evitando os boatos de que seria maricas, e Júnia namorava o filho gago do prefeito. E se divertiam. O garoto conseguia com o padre a chave da torre da igreja central, e lá passavam uma, às vezes duas horas, Júnia a tentar curar a gagueira de Rodolfo, e ele a fazer tranças nos cabelos dela. Até que após um ano de namoro, quando estavam a prestes a ficarem noivos, o pai de Rodolfo decidiu que o filho deveria estudar nos Estados Unidos. Rodolfo conheceu uma texana, escreveu numa longa carta um pedido de desculpas a Júnia, e ficou por lá.

Pela primeira vez, Júnia se sentiu traída pela vida. Não podia acreditar que um namoro que tinha tudo para dar em um bom casamento tivesse terminado assim. Só conseguiu concluir, e leva essa conclusão como espécie de filosofia de vida até hoje, que sua história havia sido amaldiçoada, estava fadada ao azar.

Ela decidiu que nunca mais teria nada com homem nenhum, e que também nunca se envolveria muito em qualquer tipo de relação, pois a única pessoa que jamais a trairia era ela mesma. Nisso, não era possível que a vida pudesse interferir. Ela seria mais forte. Seria dona de si.

Assim, foi sua entrada sem volta na amargura. E como quando era criança, mais uma vez sua escapatória foi a literatura. Passou a ler em francês e espanhol – inglês, se negou a aprender pois isso a fazia pensar em Rodolfo. Leu Victor Hugo, Montaigne, Racine, Cervantes. Com a disciplina e rigidez com que conduzia todos os âmbitos de sua vida.

Concluiu o colégio normal e foi morar em Campinas, num quarto na casa de uma tia endinheirada. Passou num concurso do governo do estado e começou a lecionar. Primeiro como substituta, depois como professora efetiva de português. Durante os primeiros cinco anos de carreira, morou na casa de sua tia, o que foi uma mão na roda mas também alimentava sua raiva. Queria ter crescido em uma realidade como aquela em que suas primas, da mesma idade que ela, tinham sido criadas. Com os mais finos cortes de tecido, idas a óperas no Teatro Municipal da capital, televisão, refrigerador e motorista. Entre um capítulo e outro, entrava no quarto de vestir das primas e colocava seus vestidos de festa e experimentava seus perfumes um a um.

Eis que seu pai morre e sua mãe decide lhe adiantar uma parte da pequena herança que o marido havia deixado, o suficiente para Júnia comprar um apartamento de um quarto e poder sair da casa de sua tia. Nessa mesma época, ela chegou a pensar em prestar outro concurso, dessa vez para o cargo de diretora, mas acabou desistindo, achava que ser diretora era algo muito administrativo, função muito operária, mecânica, da prole. Preferia continuar com a gramática e a literatura que ensinava, pois ao menos ali, quando mergulhava nas narrativas, podia ter todo o glamour que quisesse.

Seu maior sonho era escrever um romance e vê-lo publicado por alguma editora de renome, mas após três tentativas, desistiu. Tinha trauma de decepções. Três nãos já eram o bastante. De qualquer forma, o público médio não teria condições de compreender as sutilezas de seu texto, era o que repetia a si mesmo.

Júnia assistiu ao primeiro grupo de ex-alunos se formando, em seguida outro, e outro, até que perdeu as contas e se conformou com sua existência, que consistia em reclamar, remoer e, para compensar, reprender. Sempre foi a professora mais severa de todas as escolas em que trabalhou.

Severíssima, exigente, falava um português perfeito, usava expressões pomposas, fazia citações em francês, cobrava de seus alunos a leitura das obras que julgava serem as mais importantes e não hesitava em corrigir impiedosamente erros que se fizessem ouvir em sala. E a quem entra no seu jogo não profere jamais uma sentença elogiosa pública; no máximo um cerrar de olhos de aprovação.

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Júnia nunca conseguiu dinheiro, poder, glamour, nunca foi à Europa, nunca foi homenageada em nenhum tipo de evento. Júnia não tem carro, não tem computador, não tem celular, não tem filhos, não tem marido. Mas tem a certeza de que sempre fora fiel a si mesma. Não era dona de ninguém, como ouvia quem passava pelo corredor quadriculado do centenário colégio. Era dona de si e de palavra por palavra dos três mil livros que lera.

Woody Allen dá sua festa à francesa

Batem os sinos da igreja. É meia noite. Um Peugeot antigo aparece na rua e convida o homem sentado nos degraus da escada a adentrar o universo de seus sonhos: os anos 20 parisienses. Cole Porter, Gertrude Stein, Dali, Buñuel, Hemingway, T.S. Elliot, Picasso, Zelda e Scott Fitzgerald, Man Ray… Todos estes artistas e intelectuais estão reunidos em uma festa. E é para esta festa que Woody Allen convida o espectador em Meia Noite em Paris (Midnight in Paris, 2011), seu novo filme que estreia no Brasil nesta sexta (17/06).

Allen apresenta a história de Gil Pender (Owen Wilson), um escritor californiano que viaja à Paris com sua futura esposa e seus sogros. Pender tem dificuldades para escrever seu romance e para aceitar que sua vida não é o que desejava. Ele sente nostalgia de um tempo que nem mesmo viveu. Até que descobre uma passagem para o que considera a “era de ouro”.

À meia noite ele deixa sua esposa no hotel para receber conselhos dos grandes mestres da literatura e se apaixonar por Adriana (Marion Cotillard), bela jovem francesa, amante de todo o círculo de surrealistas.

Owen Wilson interpreta um personagem que é claramente o alter-ego do diretor que, em Meia Noite em Paris, não atua mais. Desajeitado, existencial, Wilson foi muito bem dirigido e atua com graça no papel do eterno sonhador.

Neste possível blockbuster, vemos a verve do realismo fantástico de A Rosa Púrpura do Cairo misturada à leveza da comédia romântica e da metalinguagem. Diferente do filme anterior, Vicky Cristina Barcelona, com seus mosaicos, cores quentes e música vibrante, desta vez Woody Allen escolheu o glamour de Paris para enaltecer, como se mostrasse a um amigo cartões postais ou fotos de uma viagem deslumbrante.

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Ao longo de todo o filme, o diretor de fotografia iraniano Darius Khondji brinca com tons de bege e dourado – a aura da Cidade Luz – e encanta com longos planos-sequência, cenas sem corte em que a câmera acompanha o caminhar dos atores pelos bulevares e margens do Sena.

Além das boas atuações de Rachel McAdams, Kathy Bates e Adrien Brody, Madame Bruni-Sarkozy também aparece na trama, em três cenas carregadas de sotaque frenchie que poderia vir de qualquer outra bela mulher francesa. Numa clara ação de marketing, Allen preferiu chamar a primeira-dama da França.

No roteiro do cineasta nova-iorquino ainda vemos sua sagacidade e seu excêntrico senso de humor, mas há uma visível alteração no ritmo. Aos 75 anos, Woody Allen trocou de marcha. Do fulgor de Penélope Cruz para o charme de Marion Cotillard – o que, convenhamos, não teve o menor problema!

Meia Noite em Paris não é um grande filme, mas retrata, com o primor de um mestre talvez já “açucarado” pela idade, uma belíssima cidade. Se em Paris É Uma Festa, Ernest Hemingway rendeu sua homenagem à capital francesa, sob a lente de Allen, Paris ganha mais uma declaração de amor.

Texto publicado em junho de 2011 no site da agência de notícias BR PRESS

Galeria

Nascido e criado no interior / o mais velho de três filhos / ariano iniciador

Falante, ligado, cantor / Fã da vida, das artes, das línguas / desde cedo um comunicador

Aos dezesseis anos ainda criança / inventou de ir viver na França / conhecer, conhecer, conhecer

Sentia que já conhecia seu mundo inteiro / decidiu ir pro Rio de Janeiro / ir viver e viver e viver

No meio do curso mudou de percurso / inventou de ir viver na Argentina / sua sina, aprender, aprender

E agora com tudo o que sabe e viveu / gente e lugares que conheceu / está pronto pra entrar em ação

Com verdade contar boas histórias / com paixão ficar na memória/ deixar o mundo mais bonito

Por isso ele voa / voa alto, voa longe / voa sem saber pra onde / mas voa sem parar 15

O Livro dos Sócios Nus

No centro do extenso vestiário do centenário clube, em meio a dezenas de fileiras de antigos armários de madeira escura, fica o quadrado de 4m x 4m onde trabalha há 30 anos Armando Morales. Cercado por uma grade pintada de branco, interrompida somente na abertura de uma espécie de guichê, Armando cuida das chaves e cadeados dos armários, das toalhas para aluguel, e pendura numa barra de aço soldada à grade os ternos e casacos dos sócios.
Armando conhece profundamente quase todos os frequentadores daquele lugar, gente fiel que não se rendeu à modernidade da nova sede no subúrbio, e todas as tardes vai nadar, fazer sauna ou somente socializar. E recebe com certa desconfiança os esporádicos novatos.
Os velhos sócios também conhecem muito bem Armando, inclusive desde antes de começar a trabalhar no vestiário. Seu pai, Ernesto, exercera a mesma função por mais de 40 anos, até o dia em que já não tinha firmeza para administrar cadeados e cabides.
A decisão mais natural na perspectiva do metódico Armando Morales foi assumir, com muito orgulho e competência, o posto de seu pai.
Quando não está recebendo ou entregando cadeados, ou organizando esmeradamente os casacos pendurados, somente quando está certo de que não há nada mais a melhorar em seu cubículo, Armando se senta na cadeira que fica escondida atrás do armarinho das chaves e se diverte com a atividade que inventou. Num caderninho, dedica cada página a um de seus sócios preferidos, os mais assíduos, e cada vez que passam por sua cabine ele anota data, hora e as mudanças ou características inusitadas que notou naquele dia. Em seu “Livro dos Sócios Nus” – que fica trancado em seu próprio armário pessoal – Armando faz observações como “Alberto Santini. Errou na cor do cabelo. Não era tão acaju”, “Mario Ibañez. Está contentíssimo. Ganhou uma fortuna com o caso do seu último cliente mafioso”, “Dario Carballo. 25 minutos no chuveiro com um garoto que talvez tenha menos de 20 anos”. É seu momento de gozo, seu maior prazer. Ele mesmo ri sozinho enquanto vai escrevendo. Como uma criança e seu jogo favorito.
Ali naquele vestiário abafado e sombrio, Armando parou no tempo. Num mundo de softwares, senhas, velocidade, Armando – sempre aprumado, de calça, camisa e sapatos brancos e os cabelos perfeitamente modelados com gel – vive de cadeados, chaves e cabides. E cigarros. A tradição argentina protege implicitamente os fumantes inveterados como ele. A poucos metros de inúmeros avisos proibitivos, Armando fecha seu “Livro dos Sócios Nus”, abre seu maço de Parliament, e prazerosamente, muito lentamente, defuma os pertences deixados sob seus cuidados.
Quem passa pelo centro do extenso vestiário do centenário clube vê Armando Morales escondido, competindo com o vapor dos chuveiros.

Bala Desejo: o baile de máscaras da boa e velha MPB

Bala Desejo (Lucas Nunes, Dora Morelenbaum, Júlia Mestre e Zé Ibarra) no Sesc Pompeia (SP) 12/08/2022

Um dia estava conversando com meu pai sobre música brasileira e ele me disse que nunca mais desde Caetano, Gil, Gal, tinha surgido algo tão bom. Eu disse que não era bem assim, que tem muita gente boa hoje também. Na hora de dar exemplos, percebi que não consegui ir muito além de Céu, Criolo, Lineker – é claro, grande ignorância minha.

Mas logo percebi também que na verdade é uma questão de gosto. Chega um momento que a gente simplesmente entende o que gosta e aceita. E meu caso é esse, gosto da boa e velha música popular brasileira. Acústica, vibrante, cantada, pulada, dançada.

E ontem percebi que tudo que eu gosto está ali no grupo Bala Desejo. O show deles é um mini Woodstock brasileiro, uma viagem alucinógena, um carnaval dos sentidos e estímulos. Um baile de máscaras ecoando o suingue, riffs e batuques dos anos 70. Assistir Dora Morelenbaum, Julia Mestre, Lucas Nunes e Zé Ibarra explorando seu talento no palco é como me teletransportar para uma época que não pude viver, é como estar nas mais míticas apresentações dos Doces Bárbaros, do Clube da Esquina, dos Secos e Molhados, naqueles clipes meio disco de Rita Lee e Elis Regina feitos para o Fantástico nos anos 80, é como estar no sítio em Campo Grande com os Novos Baianos, é como estar nos bailes do Guilherme Araújo no Morro da Urca.

Esses jovens artistas – junto com uma banda de responsa, que conta com Alberto Continentino no baixo, percussão surreal e metais deslumbrantes – fazem uma festa. Inclusive, uma festa que vai além da música: é também um ato político, uma ode à liberdade. É desse lado que quero estar.

Com presença total, barrigas de fora, beijos, suor, surto e emoção, esses quatro resgatam e reinventam a música popular brasileira, aquela, a de verdade. Sem ela, o Brasil já era. E eu agradeço por poder ver isso com meus próprios olhos.

Palmas para o diretor musical, Marcus Preto, Ana Frango Elétrico (produtora do álbum, junto com Marcus), para todos os pu** músicos da banda, ensaiadíssimos, para a iluminação deliciosa do espetáculo, e obrigado ao Sesc, nossa mãe, que faz tudo isso ser possível por ingressos de nem R$30,00!

Ouça o álbum SIM SIM SIM no Spotify: https://open.spotify.com/album/5lPgAWFWtQOUllSFzoWJtx?si=o_UrQnwhTje_5v8ZhuUgjQ

Alemão

Em alemão deve existir uma palavra para quando a gente quer de verdade dar parabéns para alguém mas na hora que lembra não pode e depois esquece e quando lembra de novo já passou da meia noite.

Deve existir uma palavra pra última gotinha que é sempre na cueca (imagino que na calcinha também).

Deve existir uma palavra para aquela chacoalhada dos cachorros.

Deve existir uma palavra para o gosto que vem quando você acende um cigarro logo depois de tomar coca-cola.

Deve existir uma palavra para o arrepio específico que dá ao ouvir uma frase forte de uma música que a gente ama.

Deve existir uma palavra pra quando a gente vê o trânsito e imagina como seria se pulasse de repente na frente dos carros.

Deve existir uma palavra para quando a gente vai comer alguma coisa que lembra a infância e não é mais tão bom.

Deve existir uma palavra para quando no chuveiro cai uma gota gelada no meio da água quente (se bem que é pouco provável que isso aconteça na Germânia)

Deve existir uma palavra para explicar quando a gente tem vergonha e não faz, e dá mais vergonha de não ter feito, aí a gente não faz ainda mais, ou faz ainda menos, e dá ainda mais vergonha.

Deve existir uma palavra para o friozinho gostoso que fica na cama nas manhãs de outono que não dá vontade de sair.

Deve existir até uma palavra para dizer que na língua alemã tem palavra pra tudo. 

Mas dizem que saudade só tem na nossa língua. 

On immigration and real tragedies

Story and pictures by Gabriel Demasi

Today marks one year of a hard time I’ve experienced.

Since then, so much happened. Very, very hard times. Times that defined the lives of millions of people and families. Or rather, death defined the lives of those who stayed. When someone asks me if I’m okay, I tell them “I’m okay, in quotes”. This tragedy of mine should go inside quotation marks too. But these other tragedies that have happened, these are the true ones, and they are so serious that I even feel ashamed of having been afraid, aimless, unlucky, or discriminated.

Miguel, João Pedro, George Floyd, the boys from Paraisópolis*: Marcos, Denys, Gustavo, Dennys, Gabriel, Mateus, Bruno, Eduardo, Luara. All dead. We know by whom.

In Brazil, officially, 180 people are murdered daily**. 75% of them are black. We know the number is much larger. Underreporting – good euphemism for the connivance between the State and the police.

Which reminds me of another tragedy: more than 47 thousand deaths by coronavirus reported so far in our country. We also know very well who is more exposed, who gets medical care and who dies without even being diagnosed, in a closed coffin, who is still having to use public transportation. We know who is most vulnerable. Meanwhile, the post of minister of health has been vacant for more than a month.

We’ve been at home for three months now. Last year, on this day, I was trapped in a space of about 500 square feet with other foreign men stopped in Barcelona. My anger at the time, as a Latin American who had been barred, prevented from entering, is worth nothing or very little compared to all the absurdity we have been living. But it turned out to be useful. It turned into a much bigger anger. I don’t think about traveling anytime soon. But destroying Borba Gato’s monument,*** hell, I’ve been thinking about it a lot.

Quote.

At 5 pm on June 19, 2019, I left Guarulhos International Airport, in São Paulo. On the 21st, at 8 pm, I was back. In the meantime, I was detained at Immigration in Barcelona. I carried my 27 years and my guitar, a friend on so many trips. I dressed plaid flannel pants, comfortable for travel, and a black hoodie.

In the last two years, I had graduated, experienced a breakup, moved to another city, quitted and started new jobs. I was desperately looking for a way out. At the time, I understood that it needed to be literally out. I decided to travel and stay at a friend’s house in Barcelona to see what happened. I wasn’t exactly thinking about staying in the country illegally, but it wasn’t exactly legal either. Perhaps I’d stay.

I had a return ticket for three months later. I had approximately one thousand euros, which I thought would last about a month. For the rest of the time, I would get by. Playing, working in some bar, doing some odd jobs, I still didn’t know how. The only thing I knew was that I could stay in Europe as a tourist for three months, and that was the only rule I stuck to.

Everything went smoothly, without delay, nervousness, mishap or unforeseen. I got off the plane and headed towards the queue. On the other side, European citizens. On my side, everyone who came from other places. In one of the armored glass windows there was a policewoman who looked kinder than the others. On her thirties, I guess, blond hair tied back. Even smiling. She called me.

– ¿Cuánto tiempo te quedas?

– Noventa días.****

Then she gave me that “gee” face. But how much money do you have? I showed her the money, my credit card and return ticket. It’s too long, what are you doing, where are you staying, one minute sir, I need to talk to my superior, please follow me. And from then on, I remained watched or imprisoned.

In the first room they left me waiting for a long time. Another policewoman. A long interrogation. Do you need an interpreter? No. Is your mom from Argentina? No. No. The same questions again.

So, she called the friend who was going to host me. She confirmed that she was waiting for me. She got told off over the phone.

– Look, ma’am, I see that you are a well-traveled, cultivated person, you’ve been here for three years now… You should know that things aren’t like that, you can’t just host anyone like that. You should have written a carta de invitación, attesting that he is staying at your house and taking responsibility for him.

More questions. I said that I had that money in hand, which was little, but that my family would send me more. That I was waiting for a scholarship I was applying for at a film school in Barcelona, but that it wasn’t certain yet. I also said that in a week I would go to Paris to visit another friend. That I had lived in Europe ten years ago and therefore had a lot of people to visit. I showed the tickets to Paris.

– Well, your friends are really nice, huh. They invite you, they pay things for you…

In the distance, I could hear the conversations of the other police officers, I could feel that public office atmosphere, which, I figured out then, was universal! At least Iberian, certainly. “The same thing every day… Let the Brazilians in!”, mocked one of them.

– Listen, Gabriel, personally I would let you in. But when you got here there was my boss, too many people around, now I just can’t do it. This is not the United States, no. We only require two things to get in, money and the invitation letter, and you don’t have either! Now that we have this procedure open, you will have to wait in the room. You will stay there, there’s a bed and a shower. And they will bring you food. Then a lawyer will try to help you and we’ll decide if you come back or not.

Escorted by two policemen, I went to look for my suitcase. I asked them if we there was somewhere I could smoke. Nope. It had been fifteen hours since I smoked my last cigarette.

– I used to smoke too. I can’t break protocol just so you can smoke. I don’t know what it’s like in your country, but here you can’t smoke indoors. See this as a good opportunity to quit!

They took me to the room. I must confess that until that moment I hadn’t realized that it would look like a prison. I didn’t know what to expect. Someone opened the door and I stayed there. A corridor with three or four doors on the left, where the bedrooms were. On the right, the bathroom. At the back a kind of dining room, with some chairs around a table. Not a single window. A grid behind the table.

I looked for a free room and settled in. The walls are completely sprayed. Multiple languages. Drawings. Phrases. Outbursts. Marks of people who were there. The dates of their stay.

Disgusted with the mattress, I lay down anyway. I was exhausted and in shock. I didn’t want to open my suitcase. I put my hoodie over the pillow, stretched my body on the bed and slept. Outside, seven or eight fellow prisoners were walking around, speaking their languages, trying to call home. Men from Georgia, Turkey, Philippines, Albania, Colombia, Peru. And I.

Six hours later, someone shout my name. It was the lawyer.

We went to another police office. Again, I explained everything that had happened. She said there was nothing she could do. I gave the official statement to another police officer, who recorded everything I said. I said that my mother could go to the bank and send me the amount of money officially required, and that my friend could come and sign the document. The officer said I should have done this before.

– What you’re saying may even be true, but you should have done it before. We cannot wait for each of your family to sort things out in your countries. How many people would be waiting here? I’ll go see the chief now, he’ll have the final word.

And then he came back: you will return, sign here, here, here, your passport stays with me, we’ll give it to the flight attendant, you come back tomorrow. It was 5pm. I would have to spend the night there. The flight was the next day at noon.

– But look, nothing prevents you from coming back again, with all the right prerequisites. You can normally enter Spanish territory whenever you want.

In the morning, I was taken by car to the plane by two very happy police officers, who while driving sang, made jokes, they were more concerned with showing each other cool stories on Instagram.

I got in after all the regular passengers, through the back door of the plane.

After watching one movie after another on the plane, feeling like a zombie, dirty, hurt, lost, the next night, I was greeted by the Brazilian federal police. They took my passport from the flight attendant and wasn’t sure whether they had to register my entry, my exit, they didn’t know where to put me in their bureaucracy. Everything was so nonsense. I was nothing. Not a hippie, not a playboy, not a drug dealer. I was just someone lost and unaware. Naive, perhaps. Overbearing, perhaps. Just in case, they walked back and forth with my passport, searched my luggage once more. There was only guava paste, coffee beans, gifts I had taken from Brazil that I could never give.

After more than 30 hours being driven like cattle through all kinds of corridors, counters, rooms, parlors, cells, gates, turnstiles, I crossed the line of imaginary freedom. My mother and brother were waiting for me at the arrivals gate. She carried a black balloon, very suitable for the occasion, on which she had written: “We are with you, Gabri”.

Little did I know that after the following months of recovery, much worse things awaited me in the next year. In 2020, then yes, I would discover what a real tragedy looks like.

Unquote.

* Paraisópolis (“land of heaven”) is the second largest favela in São Paulo, home to over 100,000 people.https://www.theguardian.com/cities/2017/nov/29/sao-pauloinjustice-tuca-vieira-inequality-photograph-paraisopolis

** According to a report released in June 2019 by the Institute for Applied Economic Research (Ipea) and the Brazilian Public Security Forum.

*** Allusion to the monuments that were being torn down during the wave of protests that followed the murder of George Floyd. The statue of Borba Gato, a 17th century colonizer in Brazil, ended up being set on fire in July 2021, by a group called Peripherical Revolution (“Revolução Periférica”), a year later this text was written. https://www.brasildefato.com.br/2021/07/30/the-burning-of-a-statue-brought-to-lightthe-permanence-of-brazil-s-history-of-colonization

**** How long are you staying? / Ninety days.

fim

Como será a melhor forma de contar para a Lena que nunca mais vou ver ela? Como vou ter coragem de contar para a Lena que vou embora, vou me mudar, Lena, sim, vamos voltar para Campinas, nós somos de lá, mas vamos ver, né, Lena, a vida é tão engraçada, de repente a gente volta e venho aqui comprar cigarro com você…

Como posso falar para a mulher da loja de conveniência, cujo nome nem sei, como vou falar para ela que mesmo sem saber o nome dela, aprecio a simpatia dela e de certa forma sentia uma conexão entre a gente. Que ela fez parte da minha vida, parte de uma parte que acabou. Você fez parte de uma parte da minha vida, não sei nada de você, mas agradeço. Você lembra, viu a Pan no meu colo, bem pequenininha, agora está grande e fica presa lá fora, ela sorri às entrelinhas. Também nunca mais vou comprar cigarro aqui com você. Ou, o que é pior, talvez um dia volte, daqui um ano, ou dez anos, ou trinta anos, você não vai estar, eu vou continuar sem saber seu nome, e nada vai ser igual e tentar refazer as coisas só vai ser pior ainda.

Como falar para a Rose que na verdade nunca vai dar certo de trazermos a Pan para passar o dia com ela, quando viermos trabalhar em São Paulo? Quantas pessoas já passaram pela vida da Rose e desapareceram? Por que é tão difícil manter as coisas? Acho que ela sente. Encara com aquela serenidade de quem já falou tanto da boca pra fora que não tem nem mais vergonha, nem se sente mal, não acredita, nem desacredita, simplesmente se acostumou. Acho que é isso, se acostumar. É não se abalar. Conseguir viver sem combinados.  

Eu queria ser como a Pan, que não lembra de nada. Não lembra da mãe, não lembra dos irmãos, no dia em que fecharmos a porta desse apartamento pela última vez ela vai pular no carro louca pra passear e nunca mais vai lembrar que morou aqui. Vai querer só o próximo passeio, e o próximo, e o próximo, e o próximo…

A vida é um passeio, a vida é o meio, a vida é o monte, viver é abrir e fechar porta, é circular, é presente virando passado sem parar. Viver é achar um jeito de morrer. É escolher: não ter coragem de contar, não ter coragem nem de se envolver, não ter coragem de mentir, ou ter vontade de pular no carro e passear.  

Saber encerrar, dizia uma professora de outro tempo. É importante saber encerrar. Acho triste. Me sinto um fingidor. Me sinto desperdiçar. Tem uma fresta logo depois do fim da realidade atual, depois da empolgação com o próximo passo, um lapso, é o tempo em que não cabe verdade, nem mentira, é o tempo. O tempo dá medo. As coisas passarem me dá medo. Não saber aceitar o fim me bagunça. Essa sensação de que tudo termina e só vou entender depois. Pessoas que foram ficando para trás. Lugares que acabaram, épocas que foram minhas e agora são uma lembrança incômoda. E agora esse momento esquisito depois de decidir acabar e sonhar com começar. É quando acabou, mas não é passado. Está decretado, o passado se arrastando e tomando conta. O tempo vento que não para de bater na cara. Um texto sem fim. E é por isso que é tão difícil parar de fumar: é aceitar que um dia o nunca mais vai chegar.

Entre latidos, tricôs, Fabíolas e celulares…

Os acordes ressoam ao fundo.

Ressoavam tímidos através da porta-sanduíche.

Uma voz familiar ecoava. Havia de esperar, era consciente de meu adianto.

A rua agitada, no quarteirão das calorias. Como fosse armadilha. Sem arapuca, caímos sozinho. Caio todas as segundas.

Uma mistura de som e sabor. Como chupar os dedos tocando violão? Lamber os beiços só pra frente do Divino Salvador.

Divino.

O cheiro de padaria já me seduz totalmente, impregnado por entre os paralelepípedos da Ferreira Penteado.

Pensando no doce, aguando a boca, manifestos do estômago clamando por glicose.

A professora me põe pra dentro, aparecendo num misto de Jovem Guarda e Hippie Chic.

Pragmática, a ausência da fragrância marcante das três e meia me é insólita.

Morreu o cheiro. Na sala de violão, “Freeway” late. Late. Fosse homem, seria ânsia pela nova fornada recém tirada do forno.

Uma hora transcorre entre latidos, tricôs, Fabíolas e celulares.

O tempo passa, enquanto o meu quindim assa no forno, se enfeita e se confeita, se adoça pra mim, seu predador. Fosse mulher, seria Amélia.

Liberto-me do cárcere, até semana que vem, dos violões grudentos.

Com açúcar e afeto, me despeço, e num ultraje à Sônia Hirsch e aos cardiologistas obesos, sigo em busca  da minha obsessão.

Júlio de Mesquita para pra eu passar, como Pluto, atrás da fumacinha que emana do forno.

Vem a dúvida. Mas antes, surpresa. É um sonho. Também tem sonho agora.

Plus cher: “R$2,50, por causa da fritura” – e completa o gordo – “mas só com óleo de girassol!”.

Tentação.

Bomba? Quindim? Quindim ou bomba?

O preço pouco importa. Nunca vi um estabelecimento tão resistente diante da inflação! Fenômeno que ocorre também, curiosamente, com seus mais fiéis clientes. São velhinhas da Paróquia. Haja jejum.

Depois dos 30 quindins da semana passada, vou partir pro bombástico.

Ela, a bomba, pisca pra mim. Explode. Estala.

A dona da “Fios de Ovos” vai até a cozinha no seu ritmo de sessão da tarde. Novela das seis, pantufinha posta, pochete lotada. De trocados que ainda não foram trocados.

Para o meu deleite, derrama a benção de uma calda de “Chocolate do Padre” ainda fervente.
Nada frugal. Tendências mais fast food, com um quê de “Super Size me”.

Salvo a caminho do ponto de ônibus, uma espera tremendamente extensa e expansivamente longa. Como que maior a cada esquina, a cada ponto, a cada passageiro que adentra o interior do que é a nata do transporte coletivo campineiro.

No caminho, dez minutos de intimidade com a bomba me tornaram mais sensível. Graduei-me com grande aptidão em sentir os movimentos da bomba, balançando de um lado para o outro do pacote.

No clube, o porteiro, que inevitavelmente cumpriria o fardo de engraçadinho, disse que não precisava.

Eu precisava.

Cena bizarra: abri minha bomba, delicadamente, com todo o cuidado e zelo do mundo.

Cena bizarra: sentado, numa mesa à beira da piscina, ironicamente provocante e satisfeito com o meu doce.

Olhava meu pobre irmão, nadando, suando na água turva da piscina semiolímpica, e minha maior aflição era se teria de deixar um pedaço para ele. Pobre! Minha culpa me corroía, guardei um pedaço, custosamente.

Comi a bomba, engoli a bomba, lambi a bomba, fui devorado, amarrado, conquistado e melecado pela bomba. Chocolate até na sunga. Chocolate no braço inteiro, no rosto, nariz, orelha. Chocolate no cabelo.

Tomadores de sol, me retirei para manutenção.

Fui ao banheiro, me limpei decentemente, suficientemente para o meu ingresso aquático de segundas e quartas.

Barriga estufada, medo de entrar na água.

Engordurado, quase afundava psicologicamente.

A bomba, pretexto do meu péssimo rendimento.

Entre um crawl e outro, sarcasmo intrínseco em mim: “vai ter que nadar muito!”.  

*Texto escrito em 2006, para o jornal da turma da oitava série da Escola Curumim, Campinas. Na data de publicação desse texto, 30 de dezembro de 2020, o Fios de Ovos ainda existe, ao lado da igreja do Divino Salvador, na avenida Julio de Mesquita. Um dos irmãos donos morreu. A esposa segue viva, de pantufa.

paz gigante

Sabia que quando vi, eu não lembrava? Olhar e não lembrar do que eu mesmo já vi.

É como achar dinheiro no bolso de uma calça guardada. Só que melhor ainda, porque aquilo que a gente vê, continua vendo.  

Há quanto tempo eu olho as mesmas coisas? Quantas fotos a gente tira, fotos que naquela hora são a totalidade da realidade, são tudo o que existe.

Depois a gente nem lembra.

É como querer esquecer um filme pra ter a mesma sensação daquela surpresa. É possível e impossível ao mesmo tempo. Mas constrói o que a gente consegue ver depois.

Esquecer uma pessoa para conhecê-la pela primeira vez. Você acha que não lembra. Algum pedaço em você nunca esqueceu. A lembrança não é uma fantasia, o esquecimento que é.

Eu lembro desse Spatifilus da escola da infância. Lírio da paz gigante. Lembro que achava graça de perceber que tanto o lírio quanto a paz podiam ser gigantes. Tem aquele pequeno falo com uns calombos e uma cor que incomoda porque não é totalmente branca.

Desde então, vi Spatifilus algumas vezes. Dessa vez, peguei pesado no contraste. Queria brincar com a realidade. Não lembro onde foi – mentira, lembro sim –, lembro que estava triste. E pus algo de luto nessa paz gigante e sombria e incômoda por não ser bem branca nem gigante nem brincadeira.

Faz sentido, as folhas brancas perdidas no meio da escuridão, quase se afogando sem se deixar levar, chamando atenção, escapando do preto. Paz afogada. Ainda assim, cheia de movimento. Os olhos melancólicos veem muito mais que os anestesiados. Muito mais. Mas é perigoso, porque a gente se acostuma a ficar dizendo calado.