Na imigração e outras tragédias sem aspas

by Gabriel Demasi

 Hoje faz um ano que vivi uma experiência forte.

Depois disso, tanta coisa aconteceu. Coisas muito, muito fortes. Que definiram a vida de milhões de pessoas, milhões de famílias. Ou melhor, a morte definiu a vida dos que ficaram. Quando me perguntam, ultimamente, se estou bem, respondo que bem, com aspas. Essa minha tragédia tem aspas também. Mas essas outras tragédias que têm acontecido, essas não, não têm nenhuma aspinha, e são de tamanha gravidade que sinto até vergonha de ter tido medo, de ter ficado sem rumo, de ter me sentido azarado ou até discriminado.

Miguel, João Pedro, George Floyd, os meninos de Paraisópolis: Marcos, Denys, Gustavo, Dennys, Gabriel, Mateus, Bruno, Eduardo, Luara. Todos mortos. Sabemos por quem.

No Brasil, oficialmente, 180 pessoas são assassinadas diariamente. 75% delas são negras. Sabemos que o número é muito maior. A famosa subnotificação. Bom eufemismo para conivência.

O que me lembra outra tragédia: mais de 47 mil mortes registradas por Coronavírus no nosso país. Também sabemos muito bem quem se expõe mais, quem consegue atendimento médico e quem morre sem nem ser diagnosticado, de caixão fechado, quem tem que pegar o transporte público, quem está mais vulnerável. Enquanto isso, estamos há um mês sem Ministro da Saúde. E o Queiroz estava escondido na casa do advogado do Presidente da República.

Estamos em casa há três meses. Ano passado, nessa data, eu estava preso num espaço de mais ou menos 50m2 com outros homens estrangeiros barrados em Barcelona. Minha revolta na época, de latino-americano negado, impedido de entrar, vale nada ou muito pouco diante de todo o absurdo que temos vivido. Mas serviu. Virou uma revolta muito maior. Não penso em viajar tão cedo. Mas derrubar o Borba Gato, nisso tenho pensado muito.

Abre aspas.

Às 17h do dia 19 de junho de 2019 saí do Aeroporto Internacional de Guarulhos. No dia 21, às 20h, estava de volta. Nesse meio tempo, estive retido na Imigração em Barcelona.

Levava comigo meus 27 anos e meu violão, companheiro de tantas viagens. Vestia uma calça xadrez de flanela, confortável para a viagem, e um moletom preto de capuz.

Depois de dois anos de formado, um término amoroso, mudanças de cidade, de trabalho, eu buscava desesperadamente alguma saída. Na época entendia que era pra fora. Decidi viajar, ficar na casa de uma amiga em Barcelona e ver o que acontecia. Não pensava exatamente em ficar ilegalmente no país, mas também não estava exatamente legal. Podia ser que ficasse.

Tinha a passagem de volta para dali a três meses. Levava aproximadamente mil euros, que eu pensava que durariam cerca de um mês. Para o resto do tempo, me viraria. Tocando, trabalhando em algum bar, fazendo algum bico, eu ainda não sabia como. A única coisa que sabia é que podia ficar na Europa como turista por três meses, e essa era a única regra à qual me ative.

Tudo transcorreu bem, sem atraso, sem nervosismo, nenhum atropelo ou imprevisto. Desci do avião e fui em direção à fila. Do outro lado, os cidadãos europeus. Do meu lado, todos os que vinham de outros lugares. Em um dos guichês havia uma policial mais simpática do que as outras. Jovem, cabelo loiro preso. Sorridente até. Ela me chamou.

–¿Cuánto tiempo te quedas?

–Noventa días.

Aí ela fez aquela cara de “eita”, essa expressão brasileira tão incrível. Eita. Mas quanto dinheiro você tem? Eu expliquei, mostrei o dinheiro e a passagem de volta.

É muito tempo, o que você vai fazer, vai ficar onde, só um minuto, vou chamar meu superior, me acompanhe por favor.

E dali em diante permaneci vigiado ou preso.

Na primeira sala levei um chá de cadeira, outra expressão brasileira incrível. Outra policial. Um longo interrogatório. Precisa de intérprete? Não. Sua mãe é argentina? Não. Todas as perguntas de novo.

Ligou para a amiga que ia me hospedar. Ela confirmou que estava me esperando. Levou dura por telefone.

–Olha, senhora, vejo que a senhora é viajada, estudada, está aqui há três anos já… Deveria saber que as coisas não são assim, não é só receber qualquer um assim. A senhora tinha que fazer uma carta de invitación, atestando que ele fica na sua casa e se responsabilizando.

Mais perguntas. Eu disse que tinha aquele dinheiro em mãos, que era pouco, mas que minha família me mandaria mais. Que estava esperando o resultado de uma bolsa de estudos que estava pleiteando em uma escola em Barcelona, mas que ainda não havia nada certo. Disse também que em uma semana iria para Paris visitar outra amiga. Que havia morado na Europa há dez anos e tinha muita gente pra visitar. Mostrei as passagens para Paris.

–São muito legais suas amigas, hein. Te convidam, pagam as coisas para você…

Ao longe, ouvia as conversas dos outros policiais, aquele clima de escritório, de repartição pública, que, descobri então, ser universal! Pelo menos ibérico, certamente. “Todo dia agora é isso. Deixa os brasileiros entrarem!”, zombava um policial.

–Bom, Gabriel, por mim eu até deixava você entrar. Mas quando você chegou aqui o meu chefe estava, tinha muita gente, eu não posso simplesmente deixar você entrar. Aqui não é o Estados Unidos, não. Nós só exigimos duas coisas pra entrar, dinheiro e a carta de invitación, e você não tem nenhuma das duas! Agora que já abrimos esse procedimento, você vai ter que esperar na sala. Você vai ficar lá, tem cama e você pode tomar banho. E vão te levar comida. Depois vem um advogado para te ajudar e vamos decidir se você volta ou não.

Dois policiais me acompanharam, fomos buscar minhas malas. Perguntei se podia ir para algum lugar em que pudesse fumar. Não. Já estava há quinze horas sem fumar.

–Eu também fumava. Não posso quebrar o protocolo só para você ir fumar. Não sei como é no seu país, mas aqui não se pode fumar em locais fechados. Mas veja isso como uma boa oportunidade para parar de fumar!

Me levaram até a sala. Confesso que até esse momento eu não tinha me tocado que pareceria uma prisão. Não sabia o que esperar. Alguém abriu a porta e lá fiquei. Um corredor com três ou quatro portas à esquerda, onde ficavam os quartos, à direita o banheiro e ao fundo uma espécie de sala, com uma mesa no centro. Tudo sem janela, fechado. Uma grade atrás da mesa.

Lá procurei um quarto livre e me instalei. As paredes totalmente pichadas. Vários idiomas. Desenhos. Frases. Desabafos. Falas de pessoas que estiveram ali. Datas de permanência.
Com nojo do colchão, deitei mesmo assim. Estava exausto e em choque. Não quis abrir a mala. Coloquei meu agasalho sobre o travesseiro, me estiquei e dormi. Do lado de fora, sete ou oito colegas de reclusão andavam, falavam suas línguas, ligavam para pessoas, andavam de um lado para o outro. Homens da Geórgia, Turquia, Filipinas, Albânia, Colômbia, Peru. E eu.

Seis horas depois, gritam meu nome. Era a advogada.

Fomos a outro escritório da polícia. Eu expliquei de novo tudo o que tinha acontecido. Ela disse que não tinha nada a ser feito. Dei o depoimento oficial para outro policial, que registrou tudo o que eu disse. Eu disse que minha mãe poderia ir ao banco mandar dinheiro e que minha amiga poderia vir me buscar e assinar a tal carta. Ele disse que eu deveria ter feito isso antes.

–O que você está dizendo pode até ser verdade, mas você tinha que ter feito isso antes. Se nós formos esperar a família de cada um de vocês resolver as coisas em seu país, quantas pessoas vão ficar esperando aqui? Vou até o delegado que vai dar a palavra final.

Voltou, você vai voltar, assina aqui, aqui, aqui, seu passaporte fica comigo, vamos entregar ao comissário de voo, você volta amanhã. Eram 17h. Teria que passar a noite lá. O voo era no dia seguinte às 12h.

 –Mas veja, nada te impede de voltar de novo, com todos os pré-requisitos certos. Você pode entrar normalmente.

De manhã, fui levado de viatura até o avião, por dois policiais muito alegres, que cantavam, faziam piadas, estavam mais preocupados em mostrar stories legais um pro outro. Entrei depois de todos os passageiros comuns, pela porta de trás do avião.

Depois de um filme atrás do outro no avião, totalmente zumbi, sujo, ferido, sem entender nada, na noite do dia seguinte, fui recebido pela polícia federal brasileira, que pegou meu passaporte com a comissária e não tinha certeza se dava baixa, alta, entrada ou saída. Nada daquilo fazia muito sentido. Eu não era nem propriamente um hippie, nem um playboy, nem um traficante. Eu não era nada. Era só alguém perdido e desavisado. Ingênuo, talvez. Prepotente, talvez. Na dúvida, passaporte pra lá, passaporte pra cá, mais uma revista na mala. Só tinha goiabada, café, coisas do Brasil que levei para presentear.

Depois de mais de 30 horas sendo tocado por todos os tipos de corredor e passagens, guichês, salas, saletas, celas, cancelas, catracas, cruzei a linha da imaginária liberdade. Me esperavam no desembarque minha mãe e meu irmão. Minha mãe carregava um balão inflável preto (próprio pra ocasião) onde estava escrito a mão: “Tamo junto, Gabri”. Depois disso, aí sim, meu ano começou.

Fecha aspas.