Gabriel Demasi

Month: June, 2020

Na imigração e outras tragédias sem aspas

 Hoje faz um ano que vivi uma experiência forte.

Depois disso, tanta coisa aconteceu. Coisas muito, muito fortes. Que definiram a vida de milhões de pessoas, milhões de famílias. Ou melhor, a morte definiu a vida dos que ficaram. Quando me perguntam, ultimamente, se estou bem, respondo que bem, com aspas. Essa minha tragédia tem aspas também. Mas essas outras tragédias que têm acontecido, essas não, não têm nenhuma aspinha, e são de tamanha gravidade que sinto até vergonha de ter tido medo, de ter ficado sem rumo, de ter me sentido azarado ou até discriminado.

Miguel, João Pedro, George Floyd, os meninos de Paraisópolis: Marcos, Denys, Gustavo, Dennys, Gabriel, Mateus, Bruno, Eduardo, Luara. Todos mortos. Sabemos por quem.

No Brasil, oficialmente, 180 pessoas são assassinadas diariamente. 75% delas são negras. Sabemos que o número é muito maior. A famosa subnotificação. Bom eufemismo para conivência.

O que me lembra outra tragédia: mais de 47 mil mortes registradas por Coronavírus no nosso país. Também sabemos muito bem quem se expõe mais, quem consegue atendimento médico e quem morre sem nem ser diagnosticado, de caixão fechado, quem tem que pegar o transporte público, quem está mais vulnerável. Enquanto isso, estamos há um mês sem Ministro da Saúde. E o Queiroz estava escondido na casa do advogado do Presidente da República.

Estamos em casa há três meses. Ano passado, nessa data, eu estava preso num espaço de mais ou menos 50m2 com outros homens estrangeiros barrados em Barcelona. Minha revolta na época, de latino-americano negado, impedido de entrar, vale nada ou muito pouco diante de todo o absurdo que temos vivido. Mas serviu. Virou uma revolta muito maior. Não penso em viajar tão cedo. Mas derrubar o Borba Gato, nisso tenho pensado muito.

Abre aspas.

Às 17h do dia 19 de junho de 2019 saí do Aeroporto Internacional de Guarulhos. No dia 21, às 20h, estava de volta. Nesse meio tempo, estive retido na Imigração em Barcelona.

Levava comigo meus 27 anos e meu violão, companheiro de tantas viagens. Vestia uma calça xadrez de flanela, confortável para a viagem, e um moletom preto de capuz.

Depois de dois anos de formado, um término amoroso, mudanças de cidade, de trabalho, eu buscava desesperadamente alguma saída. Na época entendia que era pra fora. Decidi viajar, ficar na casa de uma amiga em Barcelona e ver o que acontecia. Não pensava exatamente em ficar ilegalmente no país, mas também não estava exatamente legal. Podia ser que ficasse.

Tinha a passagem de volta para dali a três meses. Levava aproximadamente mil euros, que eu pensava que durariam cerca de um mês. Para o resto do tempo, me viraria. Tocando, trabalhando em algum bar, fazendo algum bico, eu ainda não sabia como. A única coisa que sabia é que podia ficar na Europa como turista por três meses, e essa era a única regra à qual me ative.

Tudo transcorreu bem, sem atraso, sem nervosismo, nenhum atropelo ou imprevisto. Desci do avião e fui em direção à fila. Do outro lado, os cidadãos europeus. Do meu lado, todos os que vinham de outros lugares. Em um dos guichês havia uma policial mais simpática do que as outras. Jovem, cabelo loiro preso. Sorridente até. Ela me chamou.

–¿Cuánto tiempo te quedas?

–Noventa días.

Aí ela fez aquela cara de “eita”, essa expressão brasileira tão incrível. Eita. Mas quanto dinheiro você tem? Eu expliquei, mostrei o dinheiro e a passagem de volta.

É muito tempo, o que você vai fazer, vai ficar onde, só um minuto, vou chamar meu superior, me acompanhe por favor.

E dali em diante permaneci vigiado ou preso.

Na primeira sala levei um chá de cadeira, outra expressão brasileira incrível. Outra policial. Um longo interrogatório. Precisa de intérprete? Não. Sua mãe é argentina? Não. Todas as perguntas de novo.

Ligou para a amiga que ia me hospedar. Ela confirmou que estava me esperando. Levou dura por telefone.

–Olha, senhora, vejo que a senhora é viajada, estudada, está aqui há três anos já… Deveria saber que as coisas não são assim, não é só receber qualquer um assim. A senhora tinha que fazer uma carta de invitación, atestando que ele fica na sua casa e se responsabilizando.

Mais perguntas. Eu disse que tinha aquele dinheiro em mãos, que era pouco, mas que minha família me mandaria mais. Que estava esperando o resultado de uma bolsa de estudos que estava pleiteando em uma escola em Barcelona, mas que ainda não havia nada certo. Disse também que em uma semana iria para Paris visitar outra amiga. Que havia morado na Europa há dez anos e tinha muita gente pra visitar. Mostrei as passagens para Paris.

–São muito legais suas amigas, hein. Te convidam, pagam as coisas para você…

Ao longe, ouvia as conversas dos outros policiais, aquele clima de escritório, de repartição pública, que, descobri então, ser universal! Pelo menos ibérico, certamente. “Todo dia agora é isso. Deixa os brasileiros entrarem!”, zombava um policial.

–Bom, Gabriel, por mim eu até deixava você entrar. Mas quando você chegou aqui o meu chefe estava, tinha muita gente, eu não posso simplesmente deixar você entrar. Aqui não é o Estados Unidos, não. Nós só exigimos duas coisas pra entrar, dinheiro e a carta de invitación, e você não tem nenhuma das duas! Agora que já abrimos esse procedimento, você vai ter que esperar na sala. Você vai ficar lá, tem cama e você pode tomar banho. E vão te levar comida. Depois vem um advogado para te ajudar e vamos decidir se você volta ou não.

Dois policiais me acompanharam, fomos buscar minhas malas. Perguntei se podia ir para algum lugar em que pudesse fumar. Não. Já estava há quinze horas sem fumar.

–Eu também fumava. Não posso quebrar o protocolo só para você ir fumar. Não sei como é no seu país, mas aqui não se pode fumar em locais fechados. Mas veja isso como uma boa oportunidade para parar de fumar!

Me levaram até a sala. Confesso que até esse momento eu não tinha me tocado que pareceria uma prisão. Não sabia o que esperar. Alguém abriu a porta e lá fiquei. Um corredor com três ou quatro portas à esquerda, onde ficavam os quartos, à direita o banheiro e ao fundo uma espécie de sala, com uma mesa no centro. Tudo sem janela, fechado. Uma grade atrás da mesa.

Lá procurei um quarto livre e me instalei. As paredes totalmente pichadas. Vários idiomas. Desenhos. Frases. Desabafos. Falas de pessoas que estiveram ali. Datas de permanência.
Com nojo do colchão, deitei mesmo assim. Estava exausto e em choque. Não quis abrir a mala. Coloquei meu agasalho sobre o travesseiro, me estiquei e dormi. Do lado de fora, sete ou oito colegas de reclusão andavam, falavam suas línguas, ligavam para pessoas, andavam de um lado para o outro. Homens da Geórgia, Turquia, Filipinas, Albânia, Colômbia, Peru. E eu.

Seis horas depois, gritam meu nome. Era a advogada.

Fomos a outro escritório da polícia. Eu expliquei de novo tudo o que tinha acontecido. Ela disse que não tinha nada a ser feito. Dei o depoimento oficial para outro policial, que registrou tudo o que eu disse. Eu disse que minha mãe poderia ir ao banco mandar dinheiro e que minha amiga poderia vir me buscar e assinar a tal carta. Ele disse que eu deveria ter feito isso antes.

–O que você está dizendo pode até ser verdade, mas você tinha que ter feito isso antes. Se nós formos esperar a família de cada um de vocês resolver as coisas em seu país, quantas pessoas vão ficar esperando aqui? Vou até o delegado que vai dar a palavra final.

Voltou, você vai voltar, assina aqui, aqui, aqui, seu passaporte fica comigo, vamos entregar ao comissário de voo, você volta amanhã. Eram 17h. Teria que passar a noite lá. O voo era no dia seguinte às 12h.

 –Mas veja, nada te impede de voltar de novo, com todos os pré-requisitos certos. Você pode entrar normalmente.

De manhã, fui levado de viatura até o avião, por dois policiais muito alegres, que cantavam, faziam piadas, estavam mais preocupados em mostrar stories legais um pro outro. Entrei depois de todos os passageiros comuns, pela porta de trás do avião.

Depois de um filme atrás do outro no avião, totalmente zumbi, sujo, ferido, sem entender nada, na noite do dia seguinte, fui recebido pela polícia federal brasileira, que pegou meu passaporte com a comissária e não tinha certeza se dava baixa, alta, entrada ou saída. Nada daquilo fazia muito sentido. Eu não era nem propriamente um hippie, nem um playboy, nem um traficante. Eu não era nada. Era só alguém perdido e desavisado. Ingênuo, talvez. Prepotente, talvez. Na dúvida, passaporte pra lá, passaporte pra cá, mais uma revista na mala. Só tinha goiabada, café, coisas do Brasil que levei para presentear.

Depois de mais de 30 horas sendo tocado por todos os tipos de corredor e passagens, guichês, salas, saletas, celas, cancelas, catracas, cruzei a linha da imaginária liberdade. Me esperavam no desembarque minha mãe e meu irmão. Minha mãe carregava um balão inflável preto (próprio pra ocasião) onde estava escrito a mão: “Tamo junto, Gabri”. Depois disso, aí sim, meu ano começou.

Fecha aspas.

Adriana Calcanhotto em todos os sentidos

Adriana Calcanhotto lançou, no fim de maio, o “Clipão da Quarentena”, um clipe de 28 minutos em que ela canta e performa as nove canções de seu novo álbum, produzido  durante o isolamento. De todas as faixas, uma circulou mais nas redes sociais, fora do contexto do Clipão: o “funk da quarentena”.

Quando assisti o Clipão, fiquei embasbacado com a força da câmera e da iluminação. Foram minutos de deleite visual. Depois, comecei a ver o vídeo do funk sendo compartilhado nas redes e vi críticas à cantora. Para algumas pessoas, aquela proposta não tinha sentido e até causou certa “vergonha alheia”. Uma mulher branca, uma “intelectual”, fazendo funk? Tão distante do lugar de fala de alguém que vive o riquíssimo e complexo universo do funk? É, de fato, não tem muito sentido e dá vergonha alheia.

Adriana Calcanhotto no “Clipão da quarentena”

Quem sentiu isso tem toda razão. Não se pode questionar a legitimidade de um sentimento. Sentiu, tá sentido. Não pretendo, aqui, dissuadir ninguém. Minha intenção é vincular esse funk, isolado, à trajetória da artista, para inserirmos uma peça no contexto de uma obra maior. Até chegar ao Clipão da quarentena, Adriana percorreu um longo caminho, sempre de muita curiosidade, pesquisa, pluralidade. Ela revira essas gavetas da cultura brasileira como ninguém, e sempre buscou fazer isso, e, espero, continuará fazendo. Compositora que sempre evoca as águas, ela mergulha nos mares de diversos gêneros, estilos e linguagens.

Adianto que não escrevo do lugar de crítico ou músico. Ou especialista. Não pretendo fazer uma cronologia ou uma análise histórica. Falo do ponto de vista de um amante da arte, comento algumas coisas que sei sobre Adriana e sua carreira, e falo, principalmente, enquanto grande fã. Afinal, todo filho de mãe sapatão, nascido nos anos 90, tem um enorme carinho por Adriana Calcanhotto. Ouvir a voz dela é lembrar de todos os CDs que ouvimos no carro, nas viagens, nos finais de semana em casa. E continuar acompanhando seu trabalho e me deparar com suas novas experimentações é um grande prazer.

De onde vem

Gaúcha, quando surgiu, no fim dos anos 1980, Adriana a princípio foi muito comparada a Elis Regina, sua conterrânea. Tinha os cabelos platinados e um visual irreverente, diferente do que se via no mainstream da época. Nas primeiras gravações, ela cantava mais gritado, o que aos poucos ela foi deixando de lado até chegar a algo cada vez mais autoral e confortável. Em seu primeiro álbum, Enguiço (de 1990), Adriana gravou alguns clássicos, canções de seu repertório afetivo ligado ao bolero e ao samba-canção, de Lupicínio Rodrigues a Carmem Miranda, passando por Roberto e Erasmo, entre outras pérolas dos áureos tempos do rádio.

Em 1992, ano em que nasci, ela lançou Senhas, álbum que continha “Esquadros” e “Mentiras”, sua primeira canção a ser tema de novela, que estourou no rádio. Ali já vemos na arte gráfica sinais de uma pesquisa estética, plástica, que ela mesma anuncia no verso “cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo”. Desde então, as capas de seus discos nunca são “tanto faz”. Adriana também fala com as capas. Senhas tem uma capa linda, toda vermelha, com uma foto sua de perfil, em preto e branco, e tudo escrito em letra de forma. A partir dos discos seguintes, ela escreve nos encartes com letra de mão, uma marca registrada que perdura até hoje.

Capa do álbum Senhas, de 1992

Em 1994, com A fábrica do poema, me parece que Adriana esquece qualquer preocupação mercadológica e se encontra, definitivamente, na poesia. Ela firma parcerias com Arnaldo Antunes, Wally Salomão, Antônio Cícero e outros grandes poetas.

Para onde vai

Quatro anos depois, Maritmo. Assim mesmo, mar e ritmo. Ela inaugura uma série de obras que falam do universo do mar e do movimento. Um pouquinho de astrologia: Adriana é libriana, e encarna perfeitamente o arquétipo do signo, associado à beleza, à imagem, ao equilíbrio das cores e formas. A capa de Maritmo é mais uma obra de arte. Também em cores primárias, um azulão e um vermelhão chapados, e o movimento da roupa dela.  Nesse álbum, ela homenageia Hélio Oiticica, em “Parangolé Pamplona” – que aparece também alguns anos mais tarde, no clipe de “Pelos ares”, gravado dentro de uma instalação de Oitica – e experimenta, nessa faixa e em “Pista de dança”, elementos de dance music. Ela também testa o uso de samplers, em “Vamos comer Caetano”, faixa em que ela brinca com Caetano Veloso. Adriana é uma artista iconoclasta.

Capa de Maritmo, de 1998

Em 2000, seu icônico disco ao vivo, Público. Além de faixas muito conhecidas, que tocam até hoje nas rádios – “Devolva-me”, “Mais feliz”, “Vambora” –, nesse show Adriana já apresenta seu espetáculo tão particular. Ela toca, dança, batuca, faz beat box, declama. Musica o poema “O outro”, de Mário de Sá Carneiro, parceiro de Fernando Pessoa na emblemática revista Orpheu, lançada em 1915. Mistura épocas, estéticas, palavras, tudo.

Armar um tabuleiro de palavras-souvenirs.
Apanhe e leve algumas palavras como souvenirs.
Faça você mesmo seu microtabuleiro enquanto jogo linguístico.

Babilaque
Pop
Chinfra
Tropicália
Parangolé
Beatnick
Vietcong
Bolchevique
Technicolor
Biquíni
Pagode
Axé
Mambo
Rádio
Cibernética

Celular
Automóvel
Buceta
Favela
Lisérgico
Maconha
Ninfeta
Megafone
Microfone  

Trecho de “Remix Século XX”

Cantada, 2002. Aqui ela faz uma espécie de crônica urbana, uma trilha sonora intimista e suave da cidade. Em “Pelos ares” ela flerta com o tango e com as batidas eletrônicas, quase um Gotan Project gaúcho. Ela convida os Los Hermanos para tocarem com ela. E o grupo Bossacucanova, na faixa “Jornal de Serviço”, em que lê páginas das antigas listas telefônicas. Com o piano ao mesmo tempo tão brasileiro e cosmopolita de Daniel Jobim, ela faz uma versão deliciosa de “Music / Impressive Instant”, de Madonna. Na capa, um beijo vermelho. Adriana não tem medo de mergulhar. E sabe o que está buscando.

Capa do álbum Cantada, de 2002

Em 2004, lança Adriana Partimpim, projeto muito delicado, colorido, feito “para crianças”. Sorte das crianças daquele tempo! E dos adultos também. Tem qualidade em tudo que Adriana faz. Para esse disco, ela grava canções próprias, regrava músicas antigas, marchinhas, e faz muito sucesso com “Fico assim sem você”, de Claudinho e Buchecha. Ela cria um personagem, se fantasia, se maquia, pinta e borda. O disco ganhou o Grammy latino de melhor álbum infantil. Em 2009, ela lança o Partimpim Dois, e em 2012 o Partimpim Tlês.

Adriana Calcanhotto vestida de Adriana Partimpim, 2004

Voltando ao universo do mar, em 2008 ela lança Maré, e durante a turnê em Portugal ela escreve Saga lusa, livro em que relata episódios de delírio e insônia na viagem.

Em 2011 ela parte para o samba. É infectada por um bicho, o Micróbio do Samba, que lhe dá vontade de compor à moda antiga. Com seus ótimos músicos – Alberto Continentino no baixo, Domenico Lancelotti na percussão, e participação de Rodrigo Amarante na guitarra –, mescla elementos clássicos do samba, toques eletrônicos, e sempre, sua poesia sussurrada.

Entre 2018 e 2019, essa se lança num projeto audacioso, antropofágico, inspirada pelo Manifesto da Poesia Pau Brasil, de Oswald de Andrade. Na turnê de A mulher do Pau-Brasil, acompanhada por Bem Gil e Bruno di Lullo, ela surge toda de vermelho, num cenário minimalista, com redes penduradas.

Adriana em show de A mulher do Pau-Brasil

O espetáculo, que ela chamou de “concerto-tese”, foi como a conclusão de sua residência artística na Universidade de Coimbra, onde desde 2015 ministra a disciplina “Como escrever canções”, na Faculdade de Letras. Fundada em 1290,  a Universidade de Coimbra é uma das mais antigas do mundo ainda em atividade. Adriana vai a Portugal para entender e articular passado e presente, e suas letras desse período culminam num show explicitamente político, engajado, uma espécie de crítica histórica e social em forma de colagem poética.

Abro parênteses para um projeto paralelo sobre o qual vale a pena falar:

(Em 2018, surge Nada ficou no lugar. Dessa vez, Adriana é cantada. “Novos” nomes como Letrux, Duda Beat, Rubel, Jaloo, Baco Exu do Blues fazem releituras de grandes sucessos de Adriana, que mostra toda sua deferência às novas gerações, mostrando que entende que a arte precisa do velho e do novo para se reciclar, se retroalimentar).

Depois de alguns anos sem gravar em estúdio, em 2019 vem Margem, ecoando Maritmo (1998) e Maré (2008).

Aqui gostaria de fazer a ponte para voltarmos ao assunto inicial desse texto. Pois é nesse disco que Adriana começa sua parceria audiovisual com Murilo Alvesso (Assum Filmes) que dirige, monta e concebe a fotografia de seus clipes.

Lembro que fiquei muito impressionado com a simplicidade e, ao mesmo tempo, a potência do clipe de “Lá lá lá”, do álbum Margem. Basicamente vemos Adriana sozinha, vestida de branco, numa sala. E ela vai pintando todas as paredes brancas do cômodo e pintando seu próprio corpo. Não precisa de mais nada. Só tinta azul. Um mar dentro de casa. Em “Ogunté”, também de Maré, vemos Adriana embalada num mar de plástico preto, ondas de saco de lixo, o feitiço da sereia pós-moderna.

Adriana no clipe de “Lá lá lá”, concebido e dirigido por Murilo Alvesso, 2019.

Por fim, esse ano, o álbum SÓ canções da quarentena. Em 11 dias, Adriana compôs 9 canções. Em 43 dias, o álbum foi gravado, produzido e mixado, tudo em pleno isolamento, no meio de uma pandemia, à distância, com seus amigos e parceiros espalhados pelo mundo. O tema da vez? O mar diante do qual estamos: amparo e desamparo, solidão, tempo, saudade, raiva. Fala de janela, de notícia, de panelaço. Do tempo do agora e da urgência de criarmos novas saídas.

Foi nesse contexto que ela produziu, com o Dennis DJ, do 2N Studios, o funk “Bunda lê lê”. Ela emprega “bundalelê” e “senta senta senta”, tão próprios do funk, fazendo um jogo com as palavras. “O que que faz na quarentena? Na quarentena o que que faz? Senta senta senta / Senta a bunda e estuda / Senta a bunda e lê lê/ E vai à luta”.  No clipe, vemos Adriana à frente, dançando e entoando essas quase palavras de ordem, e ao fundo vemos uma bandeira do Brasil, com o miolo em branco, onde são projetadas imagens de meninos que dançam o passinho e os motes que ela vai cantando.

“Bunda lê lê” se trata de uma artista multiplataforma, plural, que já mergulhou em tantos mundos e cenas musicais, e dessa vez escolheu o funk. Aliás, pertinente escolha para dar o recado, para aqueles que não querem ouvir outras vozes, e para aqueles que vão entender como ninguém. Fora de contexto, vemos uma mulher branca, a elite intelectual brincando de fazer funk. Com um olhar que abrange a trajetória da artista, vemos uma performer, uma criadora, compondo com ícones, símbolos e falando na linguagem mais atual e urgente que há no nosso Brasil de hoje. A revolução não será televisionada, será transmitida pelas redes sociais, e virá da favela. E ponto final.   

Agora gostaria de enaltecer o “Clipão da quarentena” enquanto obra audiovisual. O clipe, de 28 minutos, foi gravado no quarto de Adriana, em apenas dois planos-sequência, com somente duas pessoas além dela: Murilo Alvesso na câmera e Geovane Peixoto na luz. De novo, ela está sozinha, vestida de branco, num quarto todo branco. Vai performando as músicas uma em seguida da outra, sem parar, sem intervalos. Vai rodando. Vemos aos poucos cada canto do quarto se revelando. A câmera, instigante, vai e vem, pula pra frente e pra trás, de um lado pro outro. A luz, primorosa, ilumina com simplicidade e força, aumentando e diminuindo a artista, traduzindo e potencializando dos sentimentos mais profundos de solidão até a grandiosidade daquela pessoa que está ali e de repente vira gigante. Cama, aparador, ampulheta, estátua, confete, esses elementos pequenos e tão bem escolhidos vão aparecendo aos poucos e nos dando a noção do espaço. Os instrumentos também vão chegando, devagar, em cada canção, produzindo um grande tema sonoro comum. Tem poesia, tem dança, tem violão, tem samba, tem balada romântica, tem funk, tem fado. Tem janela, porta, rua deserta, Rio, Coimbra. Flashes de luz fria, relances de cor, projeções sobre as paredes e a cama, espelhos. Adriana, compositora sem eira nem beira, esplendidamente filmada e iluminada.

O que vemos ali é uma artista híbrida que está dentro de seu quarto e dentro do mundo. Falando sussurros e palavras de ordem. Acariciando e ameaçando com as palavras. Usando corpo, voz e imaginação. Adriana é arte de todo lugar, em qualquer lugar, com sombra, luz ou cor.