“A longa viagem noite adentro”, Pedro Almodóvar

by Gabriel Demasi

Antonio Banderas e Julieta Serrano passeiam pelo corredor da casa de Pedro Almodóvar em seu útlimo filme, "Dor e glória"(2019).

Antonio Banderas e Julieta Serrano passeiam pelo corredor da casa de Pedro Almodóvar em seu útlimo filme, “Dor e glória”(2019).

Até agora tinha me negado a escrever. Não queria deixar registro escrito das sensações que os primeiros dias de isolamento estão me provocando. Talvez porque o que descobri primeiro foi que a situação para mim não é tão diferente da habitual, eu que sou acostumado a viver sozinho e quase em estado de alerta, o que não é uma descoberta alegre. Nos nove primeiros dias me neguei a escrever qualquer coisa. Mas essa manhã li uma notícia que parecia capa de uma revista de humor negro: “O palácio de gelo se transforma em necrotério improvisado”. Parece giallo italiano, mas está acontecendo em Madri, é uma das “notícias sinistras do dia”.

Hoje completo 11 dias de confinamento. Me isolei na sexta-feira, 13 de março; desde então me organizo para enfrentar a noite, o escuro, porque vivo como um selvagem, no ritmo ditado pela luz das janelas e a varanda. Estamos na primavera e os dias têm sido verdadeiramente primaveris! É uma das sensações maravilhosas de cada dia, algo que tinha esquecido completamente. A luz do dia e seu variado périplo até cair a noite. A longa viagem noite adentro, mas não como algo ruim, e sim prazeroso. (Ou estou empenhado nisso, dando as costas para a agonia dos dados).

Parei de olhar o relógio, só o consulto para saber quantos passos caminhei pelo longo corredor lateral da minha casa, o corredor em que Julieta Serrano desaprovava seu filho por não ter sido um bom filho, se referindo a mim. O escuro lá fora me indica a chegada da noite, mas tanto o dia quanto a noite são tempos sem horários. Parei de ter pressa. De todos os dias, hoje, 23 de março, meus sentidos me dizem que os dias estão mais compridos. Aproveito mais tempo de luz.

Não estou animado o bastante para sentar e escrever ficção – vai chegar a hora  –, mesmo que me venham à cabeça tramas variadas, umas de natureza íntima (tenho certeza que haverá um baby boom quando tudo isso acabar, mas também tenho certeza que muitas separações terão acontecido – o inferno são os outros, dizia Sartre–, e haverá casais que terão que enfrentar as duas situações de uma vez, a separação e a chegada de um novo membro na família destruída).

É mais fácil entender a realidade de agora como uma ficção fantástica do que como parte de um conto realista. A nova situação global e viral parece saída de um relato de ficção-científica dos anos 50, os anos da guerra fria. Filmes de terror que continham a mais escrachada propaganda anticomunista. O lado B americano, filmes que, no geral, eram excelentes (especialmente os baseados nos romances de Richard Matheson, “O incrível homem que encolheu”, “Eu sou a lenda”, “Além da imaginação”) apesar das intenções avessas dos seus produtores. Além dessas, penso em “O dia em que a Terra parou”, Death on Arrival, “Planeta proibido”, “Os invasores de corpos” e qualquer filme de alienígenas.

O mal sempre vinha de fora (comunistas, refugiados, alienígenas) e servia de argumento aos mais toscos populismos (mas recomendo fortemente todos os filmes que menciono, são ótimos mesmo assim). De fato, Trump está se encarregando de fazer com que tudo o que estamos sofrendo se pareça a um filme de terror dos anos 50 ao chamar o vírus de “O vírus chinês”. Trump, mais uma das grandes doenças do nosso tempo.

Decido me entreter. Normalmente improviso (mas dias de solidão e isolamento não são um fim de semana), agora faço uma programação de cinema, noticiários na TV e leituras para as diferentes horas do dia. Minha casa é uma instituição, e eu, seu único habitante. Ultimamente também incluo algum exercício físico doméstico, até então estava abatido demais e o único exercício que fazia era passear ao longo do corredor, o de Julieta Serrano e Antonio Banderas em “Dor e glória”.

Escolho o filme da tarde, Un flic (“Expresso para Bordeaux”) de Melville, um prato certo, e para a noite me surpreendo comigo mesmo ao escolher um filme do James Bond, “Goldfinger”. Para dias como esses (isso é o que eu achava) o melhor é o puro entretenimento, a pura distração.

Quando estou vendo “Goldfinger” fico feliz com minha escolha; mais do que eu escolher, foi ele, o filme, que me escolheu. Conheci Sean Connery, estivemos lado a lado em um jantar em Cannes e fiquei surpreso com a sua cultura cinematográfica e principalmente com o fato de que minha obra pudesse interessá-lo minimamente.

Ele não morava mais em Marbella, mas ainda amava a Espanha. Ficamos amigos e trocamos telefones que com certeza nenhum dos dois precisaria. No entanto, uns meses depois, era por volta de 2001, 2002, ele me ligou aproveitando que acabava (ele) de sair de uma exibição de “Fale com ela”. Não sou nenhum um pouco fetichista, nem mitômano, mas escutar ele falar do meu filme me deixou passado. E ouvir sua voz, uma voz profunda, de um bom ator e homem charmoso. Pensava em tudo isso enquanto assistia “Goldfinger” à noite. A quarentena, a noite, Sean Connery e eu, com intervalos e interrupções.

Entre uma sessão de cinema e outra ligo a TV por um momento e fico sabendo que Lucia Bosè foi varrida por esse furacão do qual só sabemos o nome. E caem minhas primeiras lágrimas do dia. Lucia me fascinava como atriz e como pessoa. Lembro dela em “Crônica de um amor”, de Antonioni, uma mulher de uma beleza estupenda, estranha para a época, com aquele jeito de caminhar, andrógino e animal, que Miguel Bosè herdou, entre outra coisas. Vou programar para amanhã o filme do Antonioni.

Eu fui mais um dos tantos amigos do Miguel que caiu no feitiço dessa mulher tão poderosa que parecia eterna. Com Jeanne Moreau, Chavela, Pina Bausch e Lauren Bacall, Lucia era parte do olimpo/pódio da mulher moderna, livre, independente, todas elas mais machas que os homens que as rodeavam. Desculpa pela enxurrada de nomes, mas tive a sorte de conhecer e ficar íntimo de todas elas. Isso é o ruim de ficar direto em casa, você vira uma presa fácil da nostalgia.

Localizo Miguel na Cidade do México e falamos bastante tempo. Fazia anos que não conversávamos e, apesar do luto da situação, eu queria agradecer a quantidade de orquídeas brancas que ele vem me mandando ao longo das últimas três décadas no meu aniversário. Não importa onde eu esteja, quase nunca em Madri, todo 25 de setembro recebo um vaso de orquídeas brancas que duram meses, junto com o cartão de MB.

O bom de não ter horários durante o confinamento é que as pressas desaparecem. Desaparece a pressão e o estresse. Naturalmente ansioso, a ansiedade nunca me invadiu menos que agora. Sim, sei que a realidade além das minhas janelas é terrível e incerta, por isso me surpreendo por não estar angustiado, e me aferro fortemente a essa sensação nova de estar vencendo o medo e a paranoia. Não penso na norte e nem nos mortos.

A principal ocupação, algo também novo para mim porque geralmente tenho o mau costume de não responder as mensagens, ou responder pouco, é responder todo mundo que escreve para mim, interessados em mim ou minha família. Porque pela primeira vez a linguagem não é uma convenção banal e as palavras têm significado. Levo muito a sério isso de responder e toda noite faço uma ronda para me inteirar de como estão minha família e meus amigos.

Quando não entra mais luz pela janela começo a ver “Goldfinger”, volta a me fascinar a história da Shirley Bassey e a breve aparição de outra Shirley, Shirley Eaton, a linda atriz que pagou caro por ter caído nos braços de Bond. Seu corpo pintado de ouro, na cama, sem nenhum poro livre por onde respirar, ainda me parece uma das imagens mais poderosas que a franquia deu para plasmar o desejo/a avareza/o erotismo e a loucura dos vilões superpoderosos cuja ambição é destruir o mundo e que só sobrevivam seus vassalos.

Tenho que parar de assistir o filme porque a minha irmã Chus me liga para dizer que está vendo um documentário no Canal 2. Já começou faz muito tempo, passo para outro canal e me deparo com o documentário sobre a Chavela, de Daresha Kyi e Catherine Gund. Tudo o que vejo e ouço me emociona até as lágrimas. Me pegou de surpresa, por mais que eu já tivesse visto o documentário quando estreou. Mas o momento de agora é diferente de tudo o que vivi, não consigo fazer comparações. Só sei que estou confinado e ao mesmo tempo fugindo, cada dia que passa vejo menos as notícias. Tento ficar longe do medo e da angústia. A fuga da qual falo (através do entretenimento e da distração) é tudo menos monótona. O documentário sobre Chavela, apesar de já ter visto, me impacta com uma emoção que não posso nem quero controlar. Choro até o último fotograma. Me tomam de repente as lembranças de todas as noites que a apresentei na Sala Caracol ou no teatro Albéniz (o primeiro teatro em que pisou como cantora, o maldito machismo mexicano não a deixou entrar num teatro vestida com uma calça e um poncho, porque alguém enfeitada assim não era uma mulher de verdade).

Apresentei ela em Paris, no Olympia. Foi difícil, mas conseguimos encher o teatro. De manhã, passando o som, Chavela perguntou a um dos funcionários onde a Señora Piaf costumava ficar quando cantava ali. E Chavela cantou nesse mesmo lugar. A partir dessa noite, como parte do meu próprio ritual no qual Chavela era minha Piaf, eu começava minhas apresentações beijando cada centímetro do palco em que depois Chavela pisaria.

Almodóvar abrindo show de Chavela Vargas na Sala Caracol, em Madri, no início dos anos 90

Almodóvar abrindo show de Chavela Vargas na Sala Caracol, em Madri, no início dos anos 90

Vindo do divertido James Bond eu não estava preparado para escutar outra vez a voz da Gran Chamana, cantando ou falando, nem estava preparado para ver eu mesmo cantando com ela “Y vámonos” e compartilhando tantos momentos de sua vida em Madri e no México.

Lembro que liguei para ela de Tanger no natal de 2007, sua voz, a articulação das poucas palavras que ela disse me assustaram. Uma das muitas qualidades de Chavela era sua maravilhosa pronunciação do castelhano, as palavras na boca dela soavam completas, não escapava nenhuma letra. Por telefone, ela só conseguiu articular “te quiero mucho” e “el tiempo pasa”. Fiquei muito preocupado e duas semanas depois fui até a quinta La Monina, em Tepoztlán, onde uma velha amiga a hospedava. Eu estava indo pronto para o pior, sabia que a haviam internado no hospital três dias antes.  Mas quando ficou sabendo que eu estava indo, ela exigiu que lhe dessem alta na noite anterior a minha chegada – era impossível dizer não a Chavela – e ali estava ela, recebendo-nos na sua casinha de Tepoztlán como uma dessas flores de Páscoa, radiante, inteira e com sua voz de sempre que não parou de falar durante as três horas em que estivemos ali de visita.

Fomos embora à tarde e ela ficou sozinha, confinada consigo mesma. Uma mulher indígena cuidava dela até as cinco da tarde. E ficava sozinha até o dia seguinte, Chavela não deixava que contratassem alguém para acompanhá-la durante as noites. Minha mãe também era assim nos anos anteriores a sua morte, por alguma razão incompreensível as mulheres fortes ficam tacanhas e irracionais, não há maneira de mostrar a elas o quão longas são as noites, entre outras coisas porque isso elas sabem de sobra, mas têm uma capacidade sobre-humana de resistir.

Falamos da doença e da morte e ela me disse, como boa xamã que era, “não tenho medo da morte, Pedro. Nós, xamãs, não morremos, transcendemos”. Não tenho a menor dúvida de que ela estava certa. Me disse também “Estou tranquila” e continuou “uma noite vou apagar, aos poucos, sozinha e vou gostar”.

No dia seguinte, nos recebeu em pé e com vontade de sair para comer fora. Chavela era uma especialista em ressurreições. Totalmente recuperada, se encarregou, encantada, de nos mostrar alguns lugares de Tepoztlán. Começando pelo monte Chachiptl, bem na frente da finca onde viveu (nessa região John Sturges filmou “Sete homens e um destino”. Segundo reza a lenda, o monte abrirá suas portas secretas escondidas entre as pedras e o mato quando chegar o próximo apocalipse e só se salvarão os que conseguirem chegar ao seu interior, Chavela me informa. Olho para ela, mais uma vez surpreso. Ela estava se preparando para o próximo apocalipse e não consigo deixar de pensar naquele em que nós estamos nesse momento.

Com o rosto ainda úmido, respiro antes de voltar a James Bond, mas o canal está implacável hoje. Depois de Chavela colocam outro documentário, que também tem luz no título: “A luz de Antonio”. Antonio é o pintor manchego Antonio López e a luz dos seus olhos é sua mulher María Moreno, grande pintora realista que sempre ficou à margem, atrás de Antonio e do grupo de gigantes que formavam o grupo de pintores realistas dos anos 1950. Recomendo vivamente o documentário e o Canal 2 por sua programação excelente.

María Moreno morreu há poucas semanas. Lembro dela como um ser angelical, o contrário de Chavela, sua pintura exala essa atmosfera amável, grata, misteriosa, tão diferente dos quadros de Antonio López, com quem, alguns passos atrás, dividia os mesmos temas. O documentário aborda também seu trabalho como produtora improvisada no filme de Victor Erice “El sol del membrillo”, outro filme, talvez o melhor, que aborda o milagre da luz natural sobre os objetos que formam nosso mundo. A luz, sempre a luz ao longo da longa viagem noite adentro, atravessada pelas diferentes estações do ano.

Na obra prima de Erica vemos Antonio López em seu ateliê, varrendo e preparando a tela sobre a qual fará sua nova obra. É um ritual lindo. Antonio sai no humilde pátio da sua casa, com um copo de vinho na mão, e o vemos observar estarrecido a fruta amarela de um pé de marmelo, uma árvore esquálida, miúda e toda desajeitada. Os marmelos, muito amarelos, convivem rodeados de folhas de um verde escuro. É de manhã, Antonio anda em volta da árvore e presta atenção na casca áspera dos marmelos, olha para eles fascinado, desacreditado. E se propõe a pintá-los mesmo sabendo que a imagem que ele contempla é impossível de transpor à tela porque a fruta está viva e vai mudando com os dias e nem a luz se manterá a mesma. O filme fala dessa batalha do artista que tenta pegar a luz do sol no marmelo, uma batalha perdida de antemão.

No ano 92 do século passado o filme foi exibido no Festival de Cannes, numa edição medíocre na qual eu fazia parte do Júri. O filme recebeu, muito merecidamente, o Prêmio Especial do Júri. Quase tive que brigar com Gérard Depardieu, presidente do júri, que não gostou do filme e o tachou de documentário. Por sorte, o resto do júri me apoiou.

Já é muito tarde quando tiro do canal 2, mas tanto faz, o tempo em confinamento é redondo e eu não queria ficar mal com James Bond, não queria dormir até que Sean Connery acabasse com os planos do maquiavélico e gordo Goldfinger e salvasse todos nós.

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Sugestão: ler ao som da playlist “O universo musical de Pedro Almodóvar“, no Spotify. Nela, tem Chavela Vargas, Luz Casal, Caetano Veloso e muitas outras pérolas.

(Publicado originalmente no site do jornal espanhol El Diário. Tradução: Gabriel Demasi)