Gabriel Demasi

Month: August, 2016

estudo do meio (coisa de mim)

 

No ponto da praça, a angústia do ônibus que não vem, e quando vem às vezes demora a sair, e quando sai pode ficar parado em Vila Isabel do começo ao fim, ou com sorte correr vazado por baixo do viaduto. O sol forte queima, apressando quem espera. Motoristas e cobradores indo e vindo, com suas bolsinhas de troco e seu controle de passageiros, vão ao banheiro, esticam as pernas, fazem um lanche, entram pela frente, por trás, em dupla, em trio, vários personagens funcionais azuis eufóricos como num passeio da escola.

Na minha escola os passeios eram chamados de estudos do meio. Coisa do construtivismo. Em casa, os trajetos de carro pela cidade da infância eram visitas guiadas, explorações das construções, das plantas, do desenho dos carros, do nome das ruas, do texto dos outdoors, das roupas, dos passantes. Coisa de pai arquiteto. Coisa de mãe curiosa.

Vivo um estudo do meio. Observo, fotografo, absorvo e anoto tudo. Sou um aluno aplicado.

O 436, quando passa, quando sai e quando anda, é uma grande excursão. Estética e terapêutica: nele já me preparo para a análise. Aliás, estou sempre preparado para a análise, esta e aquela.

Suando as costas contra o plástico do assento do ônibus sem ar, vou chacoalhando, claro, mas vou no altinho. Na janela. Pronto para ver tudo do alto. Com o celular pronto para disparar. Com a mão pronta para resgatá-lo de um ladrão. Pronto para a viagem.

A viagem é confusão no pontilhão de São Cristóvão, confusão no sobe e desce perto da Cidade Nova, é tudo cinza, concreto, galpão, barracão, estacionamento, é pichação, motel, calçada deserta escaldante, casarões do Rio Comprido. Casarão que virou CCAA, casarão que virou Subway, casarão que virou pet shop, casarão à venda, casarão para alugar, casarão abandonado, janelão de prédio dos anos 50, janelão dos 60, dos 70, janelinha dos condomínios de gesso, janelinha, janelinha. É tudo isso embaixo e o viaduto em cima. No fim, o sprint na subida.

E escuro. 760 metros no escuro. 100 no claro. Mais 2040 no escuro. 2800m sob pedra.

E então luz, muita luz, tudo muito, muito verde, muito céu muito azul, muito sol na água de espelho, muita brisa batendo, a volta toda na lagoa. Me enche o peito tudo, encho os olhos de olhar, a cabeça tilinta de beleza, o coração brilha. Seu Rodrigo, o senhor está de parabéns.

E na chegada, a bossa. Enche meus ouvidos. Não essa. Aquela, que tanto ouvi.

E passam madames com cachorros, personagens executivos funcionais e suas sapatilhas com lacinho, e bolsas e smartphones gigantes, gringos perdidos com suas garrafas de água, funcionários fumando do lado de fora, e alguns: velhos, fashionistas, enrustidos sarados, pedintes, garotas Farm, livraria, cabeleireiro, Casa Reis, Rei dos Plásticos, Ipanema 2000. Vamos lá, Gabriel? Sim, Lacan. Vamos aos outros meios, pois.

A viagem é o meio para o fim.

incompreensão

Paulinho. Você ta me ouvindo, Paulinho?
Não, Luzia. Ele não ta te ouvindo. Aliás, faz anos que ele não te ouve. Mas o resto do prédio ouve vocês dois, o dia inteiro.
Como você aguenta essa situação, Luzia? Todo dia essa gritaria, essa eterna discussão, você não vai convencer o Paulinho de nada. Ele não te ouve. Ele é surdo. Liga a tv no máximo pra assistir futebol, jornal, novela, e pra não te ouvir. Ele ta preso no mundo dele, na bebida dele, na resmungação ininterrupta, no ódio por tudo: pelo Lula, pela Dilma, pelo Eduardo Paes, pelos empreiteiros, pelos comunistas, pelos neo-liberais, pelos diretores das federações esportivas, pelo salário dos jogadores, por qualquer coisa que possa servir para expurgar a raiva.
Há quantos anos vocês são casados, Luzia, e você ainda tem esperança de que ele aprenda a te ouvir, a argumentar, a ter algum tipo de diálogo saudável? Confesso que às vezes, Luzia, eu começo a pensar que você é ainda mais louca que ele. Faz a sonsa, sabe? Na rua não cumprimenta ninguém, vive quietinha, discretinha, chega em casa e solta os cachorros no Paulinho.
Eu prefiro a Solange, a síndica, que faz a louca total, que não disfarça na rua, chega conversando com a cachorra. As quietinhas são as mais falsas, se revelam dentro de casa. Só que aqui todo mundo ouve tudo, Luzia. Não tem dentro e fora.
Paulinho fica na sala, sentado no sofá, fumando sem parar e abrindo latinhas de cerveja, cujos estalos reverberam por todos os doze apartamentos. A tv, ligada no último volume, tv de graça para todo o prédio. E Luzia na cozinha, toda sofridinha, cozinhando de pé ou fingindo se entreter com alguma atividade, a porta aberta como se o pátio do prédio fosse o jardim deles.
Paulinho, que ladra e ladra, uns meses atrás resolveu morder. Se descontrolou, partiu pra cima da Luzia, foi uma gritaria, ela berrava “Paulinho! Paulinho! Você me agrediu” e ele surtado batendo as portas e gritando “Demônio, demônio” e outras coisas indecifráveis.
O que é mais absurdo? A insensatez do Paulinho ou você, que ta até hoje nessa? Sabe, Luzia, seria melhor se vocês se matassem de uma vez. Seria mais sincero. Seria, enfim, um acordo entre os dois.
Assim, em mundos diferentes, acontece a comunicação desencontrada dos dois, a unicação, que de comum não tem nada. Não se ouvem, não estão mais juntos, não têm a mesma opinião sobre nada, sequer suportam ficar no mesmo cômodo. Mas insistem em tentar se fazer ouvir. São viciados em incompreensão.

desemprego

Não estou trabalhando. Não estou de férias. Um desempregado não se sente realmente livre. Não sei bem se estamos em julho ou agosto. Por estar em casa, enfim marquei com o técnico da máquina de lavar roupa. Concordei precipitadamente com o conserto, mas valeu a visita: ele me disse que a máquina é ótima e que cuido muito bem dela. E isso me deu uma felicidade enorme, como uma mãe deve se sentir feliz na reunião do filho, na escola. Descobrir uma faceta nova de algo tão próprio seu, ouvir esse parecer tão positivo e surpreendente de um especialista, um grande orgulho. Nunca esperei me sair bem no cuidado com eletrodomésticos e aparelhos em geral.

Antes da chegada do técnico, e depois também, fui tomando café, para ver se alguma coisa se ativava, para me sentir um pouco menos culpado pelo ócio, talvez, o café é uma droga mesmo e ponto. A falta da cafeína dá a sensação de que o mundo está devagar e que não consigo viver assim. Preparei ao todo três canecas. Xícaras são pra amadores. Deixei restos em todas. Esfriou. Acabou o filtro. Caíram pedacinhos de borra. Um desastre. Não cuido tão bem do café quanto da máquina de lavar.

Em algum momento esse café tinha que bater.

Bateu de madrugada. Clássico. O café dá um dia “ganho” e um dia perdido depois. Acelera e desregula. Como tudo que não é natural. O ser humano tenta acelerar, “otimizar” o tempo, mas afinal é bem verdade que a vida tem um ritmo natural e isso é incontestável.

Horas antes, tinha tomado algumas longnecks, um copo de um resto de vinho e fumado maconha, mas já eram duas, três, quatro da manhã, e a cafeína ainda a otimizar meu tempo na cama. E é nessa hora que as coisas mais bizarras do mundo passam pela cabeça. Confusa com essa mistura estranha de sono, cansaço, ansiedade, irritação, e muita criatividade, a mente cria pensamentos esquisitos, aqueles que quando estamos normais conseguimos estabilizar. Contas para pagar, coisas para resolver, problemas e mais problemas, passei para as ideias de viagens dos sonhos, logo um assalto em Genebra, e de repente, sim, estamos em agosto! dá tempo. vou me inscrever no próximo Big Brother e foda-se. Um milhão e meio. Aguentar três meses numa casa, nem de férias nem desempregado, pagar enfim todas as contas, alugar outro apartamento, escrever um livro, conseguir fazer um programa de entrevistas, resolver todos os problemas da família: escola para os irmãos, iMac para o namorado, tratamentos para a mãe de picão preto, branco, de todas as cores, viagens, tranquilidade, felicidade, paz. Mas insônia, insônia, assim não vou conseguir me inscrever. E começa a ventania do Grajaú. Vento forte correndo entre a pedra e os prédios. As janelas sacodindo mesmo fechadas. As portas batendo. Os primeiros vizinhos indo trabalhar. A campainha da portaria do prédio ao lado.

Sonhando ou insone, começo a ter a grande ideia, o corpo quer dormir mas a mente ainda não parou, e me lembro da minha analista dizendo “Gabriel, a inspiração não vem para todos. Faça algo com ela. Não deixe ela passar”. Vou lembrar amanhã, vou lembrar, prometo, estou arquivando direitinho aqui: cenas de um filme noir, de época, de ação, desses de detetive, muito escuro, meio surreal, cômico, meio como os livros do Jô Soares, meio como os 007 dos anos 60, aquela sensação de “sério que ninguém percebe que ele é o vilão?”. Um casal que tinha sido agente secreto não sei de qual lado, cartas antigas em francês, um quebra-cabeça com peças do passado faltando, algum grande escândalo que eu ia desmascarar, e tudo indicava que o vilão eram as “grandes corporações cervejeiras”.

Moído por toda a ação da noite, acordado confirmo que realmente estamos em agosto. As inscrições para o Big Brother estão encerradas. Vou ter que pensar num outro plano. E a inspiração passou: não consigo me lembrar direito da história genial.